Numa nova exortação apostólica, chamada Laudate Deum (Louvado seja Deus), o Papa Francisco alerta-nos para que não estamos a fazer o suficiente para lutar contra as alterações climáticas. Desmonta os argumentos dos negacionistas e destaca a inércia dos políticos, quando “este mundo que nos acolhe está-se esboroando e talvez aproximando dum ponto de ruptura”.
Este documento especifica e completa a encíclica de 2015 Laudato si (Louvado Sejas) de 2015, em que o Papa Francisco abordava o cuidado com o ambiente, o consumismo e o desenvolvimento insustentáveis e apelava à mudança e unificação das acções para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas. Era um documento maior, de 185 páginas. A nova exortação, Laudate Deum, tem apenas 18.
Foi lançada no dia de São Francisco, padroeiro dos animais e do ambiente, e também no dia em que se iniciou a assembleia dos bispos, ou sínodo dos bispos, em que serão discutidos temas como o acolhimento dos divorciados recasados à ordenação de mulheres e homens casados, passando pela abertura à comunidade LGBTQ+ e pelo celibato obrigatório dos padres
As alterações climáticas, sublinha o Papa Francisco, são “um problema social global que está intimamente ligado à dignidade da vida humana”. Os seus efeitos “recaem sobre as pessoas mais vulneráveis, tanto ao nível nacional como mundial”, recorda, e o nosso cuidado pelo outro e o nosso cuidado com a terra estão intimamente ligados.
“Por muito que se tente negá-los, escondê-los, dissimulá-los ou relativizá-los, os sinais da mudança climática impõem-se-nos de forma cada vez mais evidente”, sublinha o Papa. Embora nem todas as catástrofes naturais se possam atribuir às alterações do clima, “nos últimos anos, temos assistido a fenómenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, seca e outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis duma doença silenciosa que nos afecta a todos”, diz o Sumo Pontífice.
Explicar a ciência
Faz uma revisão da matéria científica: “Sempre que a temperatura global aumenta 0,5 graus Celsius, sabe-se que aumentam também a intensidade e a frequência de fortes chuvadas e inundações nalgumas áreas, graves secas noutras (…). Se até agora podíamos ter vagas de calor algumas vezes no ano, que aconteceria se a temperatura global aumentasse 1,5 graus Celsius, de que, aliás, estamos perto? Tais vagas de calor serão muito mais frequentes e mais intensas. Se se superarem os dois graus, as calotas glaciares da Gronelândia e de grande parte da Antárctida derreter-se-ão completamente, [5] com consequências enormes e muito graves para todos”.
O Papa avança vários exemplos de argumentos de cépticos das alterações climáticas, dando uma resposta que os desmonta. “Vejo-me obrigado a fazer estas especificações, que podem parecer óbvias, por causa de certas opiniões ridicularizadoras e pouco racionais que encontro mesmo dentro da Igreja Católica”, justifica.
Responde, por exemplo, a quem não dá muito crédito ao aumento da temperatura média do planeta nas décadas mais recentes. “Nos últimos anos, não têm faltado pessoas que procuraram minimizar esta observação. Citam dados supostamente científicos, como o facto de que o planeta sempre teve e continuará a ter períodos de arrefecimento e aquecimento”, expõe o Papa Francisco.
“Transcuram outro dado relevante: aquilo a que agora estamos a assistir é uma aceleração insólita do aquecimento, com uma velocidade tal que basta uma única geração – e não séculos ou milénios – para nos darmos conta. A subida do nível do mar e o degelo dos glaciares podem ser facilmente notados por uma pessoa no arco da sua vida e, provavelmente, dentro de poucos anos, muitas populações terão de deslocar as suas casas por causa destes fenómenos”, escreve.
A origem humana das alterações climáticas já não se pode pôr em dúvida, afirma o Papa Francisco. A concentração na atmosfera dos gases com efeito de estufa, que causam o aquecimento global, manteve-se estável até ao século XIX, e começou a acelerar desde meados daquele século, coincidindo com o progresso industrial. Mas nos últimos 50 anos, dispararam. “Estava eu a escrever a Laudato si, quando se atingiu o máximo histórico – 400 partes por milhão – chegando, em Junho de 2023, a 423 partes por milhão [7]. Considerando o total líquido das emissões desde 1850, mais de 42% ocorreram depois de 1990”, explica o Papa.
Ao mesmo tempo, nos últimos 50 anos, a temperatura média do planeta tem acelerado. “A tendência foi um aquecimento de 0,15 graus Celsius por decénio, o dobro do registado nos últimos 150 anos. De 1850 até hoje, a temperatura global aumentou 1,1 graus, fenómeno que se amplifica nas áreas polares”, expõe Francisco. Ao mesmo tempo, os glaciares retraem-se, a cobertura de neve diminui e o nível do mar aumenta constantemente, nota.
“É impossível esconder a coincidência destes fenómenos climáticos globais com o crescimento acelerado das emissões de gases com efeito de estufa, sobretudo a partir de meados do século XX. A esmagadora maioria dos estudiosos do clima defende esta correlação, sendo mínima a percentagem daqueles que tentam negar esta evidência”, diz o Papa nesta lição resumida sobre os factores por trás das alterações climáticas.
Fazer com que a política resulte
Só que a crise climática não tem sido prioritária na política internacional. “Infelizmente, não é propriamente uma questão que interesse às grandes potências económicas, preocupadas em obter o maior lucro ao menor custo e no mais curto espaço de tempo possíveis”, comenta o Papa.
Francisco faz um apelo directo aos líderes mundiais sobre o que é necessário para a próxima Cimeira do Clima das Nações Unidas (COP28), que abre no Dubai a 30 de Novembro, possa ter sucesso – o que não tem sido o caso com estas cimeiras. “Se há sincero interesse em que a COP28 se torne histórica, que nos honre e enobreça enquanto seres humanos, então só podemos esperar que se chegue a fórmulas vinculantes de transição energética que tenham três características: que sejam eficientes, vinculativas e facilmente monitorizáveis, a fim de se iniciar um novo processo que seja drástico, intenso e possa contar com o empenho de todos”, apela o Papa.
Apesar do Acordo de Paris, assinado em 2015, isto não tem acontecido no caminho percorrido até agora, sublinha o Papa Francisco, “mas só com um tal processo se pode restaurar a credibilidade da política internacional, e reduzir significativamente o dióxido de carbono e evitar a tempo males piores”, escreve na exortação Laudato Deum.
A COP28 realiza-se nos Emirados Árabes Unidos, um grande exportador de combustíveis fósseis – “embora tenha investido muito nas energias renováveis”, salvaguarda Francisco. Mas apela a que isso não seja motivo para desistir deste palco de negociações sobre o clima. “Adoptar uma atitude renunciante a respeito da COP28 seria autolesivo, porque significaria expor toda a Humanidade, especialmente os mais pobres, aos piores impactos da mudança climática”, avisa.
“Esta conferência pode ser um ponto de viragem, comprovando que era sério e útil tudo o que se realizou desde 1992 [data da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas]; caso contrário, será uma grande desilusão e colocará em risco quanto se pôde alcançar de bom até aqui”, frisa o Papa.
O Papa marcha contra aquilo a que já na encíclica Laudato Si chamou o “paradigma tecnocrático” que considera estar na base do processo de degradação ambiental, e repete-o agora. “Trata-se de um modo desordenado de conceber a vida e a acção do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar. Consiste, substancialmente, em pensar como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. Como consequência lógica, daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia”, recorda Francisco.
A falsa fé da tecnologia
“Contrariamente a este paradigma tecnocrático, afirmamos que o mundo que nos rodeia não é um objecto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites”, afirma o Papa. “Nem sequer podemos considerar a natureza como uma mera moldura onde desenvolvemos a nossa vida e os nossos projectos, porque estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos.”
Não é apenas na tecnologia que se deve procurar a solução para todos os problemas da Terra. “Supor que qualquer problema futuro possa ser resolvido com novas intervenções técnicas é um pragmatismo homicida, como pontapear uma bola de neve”, declara o Papa Francisco. “É verdade que são necessários esforços de adaptação face a males irreversíveis a curto prazo e são positivas algumas intervenções e progressos tecnológicos para absorver ou capturar os gases emitidos, mas corremos o risco de ficar bloqueados na lógica do consertar, remendar, retocar a situação, enquanto no fundo avança um processo de deterioração, que continuamos a alimentar”, alerta.
Francisco aborda as acções dos “grupos ditos ‘radicalizados’”, que querem que os governos actuem de forma mais eficaz contra as alterações climáticas e que se tornam mais frequentes na altura das conferências do clima. “Na realidade, preenchem um vazio da sociedade inteira, que deveria exercer uma sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus filhos”, salienta o Papa.
“Duma vez por todas, acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão apenas como ambiental, ‘verde’, romântica, muitas vezes ridicularizada por interesses económicos”, exige.
Aos poderosos, atrevo-me a repetir esta pergunta: “Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir, quando era urgente e necessário fazê-lo?”, interroga Francisco.