Com a IA, qualquer pessoa pode fazer qualquer coisa
A 14.ª edição da Q-Day Conference, promovida pela Quidgest, ouviu especialistas de diferentes áreas para perceber o caminho desta inovação.
A inteligência artificial generativa é uma ferramenta incontornável, mas a sua evolução não deve ser deixada apenas para os especialistas porque o seu impacto é global e afecta a vida e os negócios de todos. Ética, regulação e veracidade das fontes de dados são essenciais para evitar a má utilização da tecnologia.
Milhares, se não milhões de pessoas, utilizam diariamente o famoso ChatGPT e outras ferramentas de inteligência artificial (IA) generativa para colocar as mais diversas questões. Muitos fazem-no por divertimento, outros como ferramenta de apoio à concretização de tarefas profissionais, outros ainda com propósitos menos claros. Mas esta é apenas a face mais visível da IA que hoje está presente num conjunto de situações do dia-a-dia, sem que, muitas vezes, o comum dos cidadãos disso tenha consciência.
No entanto, o advento da IA não é de hoje, e aquilo que conhecemos actualmente nada mais é do que a evolução de uma tecnologia que já passou por várias fases. Nos últimos dez anos, exemplifica João Paulo Carvalho, “habituámo-nos a uma IA que sabia diferenciar um gato de um cão, mas era incapaz de descrever as diferenças entre os dois”. O co-fundador e senior partner da Quidgest falava durante a abertura da 14.ª edição do Q-Day, evento anual promovido pela tecnológica, que contou com mais de 1600 participantes, entre audiência presencial e online, via streaming.
Em jeito de enquadramento no evento cujo tema foi, precisamente, ‘Descodificar a IA generativa’, João Paulo Carvalho não quis deixar de recordar as diferenças entre a tecnologia que suportava os primeiros projectos de IA, e as ferramentas que o mercado tem hoje ao seu dispor. As duas perspectivas, que tiram partido de diferentes características da cognição humana, actuam de forma distinta e com objectivos diferentes.
Por um lado, a IA simbólica é capaz de modelar o raciocínio humano através de regras, lógica e algoritmos explícitos, com o objectivo de criar sistemas que pensam de forma lógica, resolvem problemas, demonstram teoremas e explicam o seu raciocínio de uma forma compreensível para os humanos. Por outro, a IA neuronal que procura replicar a actividade neuronal do cérebro humano, criando sistemas eficazes na tarefa de estabelecer associações estatísticas entre grandes volumes de informação (treino), e usar essas associações para gerar conteúdos coerentes.
Neste contexto, o responsável da Quidgest não tem dúvidas: “A IA híbrida é o futuro”. Mas, até lá, é preciso descodificá-la e torná-la acessível a todos. Ou seja, como explica João Paulo Carvalho, a automatização do desenvolvimento de software é essencial – como já acontece na plataforma Genio da Quidgest -, na qual o utilizador não tem que ter conhecimentos técnicos, saber desenvolver código ou linguagens de programação, “para ser protagonista da transformação digital”. Através desta plataforma torna-se muito simples a criação rápida e intuitiva de soluções tecnológicas específicas e perfeitamente adaptadas ao negócio de cada organização, com prazos e investimentos muito reduzidos face à programação tradicional.
Uma mudança com consciência
O uso responsável da IA é uma das principais preocupações actuais, quando as notícias sobre o desenvolvimento de ferramentas cada vez mais poderosas surgem a um ritmo quase diário. É preciso lembrar, alerta Paulo Dimas, “que a IA pode ser uma arma contra a democracia”. O vice-presidente para a inovação na Unbabel, que participou no primeiro painel de debate do dia, destaca as intervenções em processos eleitorais que já aconteceram, nomeadamente, nos Estados Unidos.
O também CEO do Center for Responsible AI refere igualmente a necessidade de estabelecer regras para a utilização da IA que garantam que esta é ‘treinada’ a partir de fontes fidedignas, que é justa e sustentável. “A IA pode e deve ser usada para contribuir para a concretização dos ODS (Objectivos de Desenvolvimento Sustentável) das Nações Unidas”.
A utilização da IA para o bem social tem, na perspectiva de Pedro Oliveira, um enorme potencial. Veja-se o contributo em áreas como a saúde, com projectos como a plataforma Patient Innovation, na qual pessoas comuns podem submeter as suas ideias e propostas sobre como resolver problemas de saúde. O Dean da Nova School of Business and Economics, que participou no mesmo debate, revela que o projecto conta com 1,5 milhões de utilizadores a nível global e que são feitas, em média, três submissões diárias, e dá o exemplo do caso de Tel Golesworthy, engenheiro, que encontrou uma solução de engenharia para o seu problema cardíaco. A solução é hoje utilizada por médicos de todo o mundo. “A IA aumenta a capacidade de todos nós resolvermos um problema”, reforça.
O despertar para a regulamentação, que já está a acontecer a nível global, é outro passo essencial para acompanhar a evolução da IA, como defende Sandro Mendonça. O professor no ISCTE Business School, reforça que a actual disputa regulatória a que assistimos, entre Estados Unidos e Europa, é um passo positivo, “mas pede-se mais abrangência e mais consistência”.
Sector público nacional na vanguarda
Recentemente, Portugal tornou-se pioneiro a nível mundial ao apresentar o primeiro chatbot com rosto (um avatar que em breve terá também nome), que usa a IA generativa para esclarecer dúvidas sobre a Chave Móvel Digital. João Dias, presidente da AMA (Agência para a Modernização Administrativa), revelou na Q-Day Conference que, nos primeiros três meses, o número de activações da Chave Móvel Digital cresceu, com uma média de 100 acessos diários. O objectivo é alargar a outros serviços público, evitando deslocações presenciais desnecessárias. O responsável da AMA destaca ainda a desmaterialização do Cartão do Cidadão e a App SNS24 como outros projectos inovadores e em que o país se destaca face aos congéneres europeus.
Rever processos e arquitecturas dos sistemas informáticos da administração pública para integração de ferramentas de IA generativa que permite optimizar toda a infra-estrutura tecnológica do Estado é o trabalho que a ESPAP (Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública) tem vindo a fazer. Em parceria com universidades, a entidade pública está a modernizar-se com o objectivo de “servir melhor o cidadão”, mas também, como refere o seu presidente, de libertar os seus recursos humanos para funções mais criativas e de validação. “O factor humano será sempre essencial na análise e validação das decisões sugeridas por sistemas de IA”, afirma César Pestana.
Para esta modernização, Pedro Dominguinhos recorda que existem 2,4 mil milhões de euros de dotação para projectos na área da transição digital, mil milhões dos quais destinados à administração pública. O presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) destaca ainda as oportunidades para as empresas, nomeadamente através das agendas mobilizadoras.
A fechar a manhã de trabalho, Wagner Araújo, enfatizou a importância do governo electrónico (eGov), pelo acréscimo de eficiência e transparência que aporta, bem como pela melhoria dos serviços, em geral, e da sua relação com o público. Já sobre a integração da IA generativa, o investigador na Universidade das Nações Unidas, alerta para os riscos associados, nomeadamente a falta de regulação. “A IA impactará os sectores público e privado, a economia e o sistema democrático”.
Antes da pausa para o almoço ainda houve tempo para destacar o trabalho e os projectos de clientes e parceiros da Quidgest. Os Prémios Co-Inovação são atribuídos anualmente e galardoam a criatividade, a criação e a inovação. Ao todo foram entregues 14 prémios pelas mãos de Cristina Marinhas, CEO da Quidgest.
O sucesso da IA depende de todos
Mais virada para o impacto da IA nos negócios e nas organizações, a agenda da tarde contou com dois painéis que abordaram o sucesso nas empresas e o desafio da gestão do talento, temas transversais a todos os sectores. Para início de conversa, Alina Buteica quis desmistificar o impacto negativo da IA nas organizações, destacando o seu papel como potenciador da criatividade humana, muito útil em actividades de atendimento ao cliente ou na preparação de materiais e imagens. Contudo, a especialista em L&D e RH e fundadora e CEO na Illuminated Essence & Growth Hives, alerta para o perigo de permitir que estes sistemas tomem decisões éticas. Alina acredita que é necessário limar um conjunto de arestas para que a tecnologia esteja ao serviço dos humanos e não o oposto. Por isso, recomenda, “todos devem envolver-se em moldar o futuro da IA e não deixar que apenas os especialistas o façam porque impacta o futuro da humanidade”.
“É preciso combinar três perspectivas – pessoas, coisas e inteligência – em todos os desafios da IA porque nem sempre é usada por boas razões”, acrescenta Liliana Ferreira. Na perspectiva da directora do Fraunhofer Research Center for Assistive Information and Communication Solutions em Portugal, é fundamental certificar os sistemas e garantir que cumprem requisitos como a proveniência adequada dos dados, rastreabilidade, responsabilização e transparência.
No que se refere às competências, o medo de que a IA contribua para o fim de muitas funções nas empresas é, na opinião de Zoltan Istvan, exacerbado. Para o especialista em IA, autor e jornalista, não sabemos que funções deixarão de ser necessárias, mas também não conhecemos ainda todas as novas competências para as quais será preciso reconverter a força de trabalho.
No entanto, há um ponto em que todos os oradores concordam: a automatização das tarefas deixa a vertente mais criativa para o ser humano. Actualmente, lembra Isabel Ramos, lidamos com excesso de informação o que, apesar do aparente paradoxo, está a minar a nossa capacidade de atenção. A professora da Universidade do Minho assegura, citando um estudo, que precisamos de 23 minutos e 15 segundos para nos reforçarmos após uma distracção, sendo que somos interrompidos, em média, 11 vezes por dia. “Isto exponencia a vulnerabilidade para a manipulação”, alerta.
Mas então, no futuro, quem não tiver competências técnicas não terá lugar no mercado? A resposta é negativa, diz Susanna Coghlan. Aliás, aponta a Europe Business Development Manager na Quidgest, citando um estudo do World Economic Forum, o pensamento analítico e o pensamento crítico lideram a lista das competências mais procuradas, com os requisitos mais técnicos a surgir bastante abaixo. Isto significa que as competências técnicas já não são uma barreira à inovação. “Deve haver igualdade de oportunidades para que todos possam causar impacto através da transformação digital”, salienta. A combinação entre uma aprendizagem intuitiva e a automação com IA é, na perspectiva da especialista, a solução ideal para preparar a força de trabalho do futuro. “Esta é a base da combinação entre a IA generativa e a nossa plataforma Genio”.
No fundo, a IA “é uma ciência, uma competência que cada vez mais temos que ter para utilizar a tecnologia com um propósito”, conclui João Paulo Carvalho na sessão de encerramento.
A gravação integral da Q-Day Conference 2023 está disponível aqui.