“A União Europeia (UE) não está num bom caminho para um futuro azul sustentável”, declara uma análise do World Wildlife Fund (WWF) de Junho deste ano. As estratégias marinhas dos 16 países costeiros analisados tiveram, na sua maioria, classificação negativa no relatório onde 100% correspondia ao cumprimento pleno de uma estratégia sustentável.
Portugal foi avaliado em 45,97%. “Foi um dos primeiros Estados-Membros a aplicar o planeamento marítimo, mas falta-lhe um plano específico para o arquipélago dos Açores, o que deixa mais de 50% das águas portuguesas sem um plano de gestão sustentável”, diz a análise. No que toca à região atlântica, que Portugal partilha com Espanha, França, Irlanda e Reino Unido, “há uma falta crucial de cooperação regional em questões marinhas”, expressa a WWF.
Esta região representa 24% das águas europeias, mas apenas 12% da população total da UE. É também considerada a zona marítima da UE com maior potencial para a economia azul, o também apelidado de blue growth – segundo o Banco Mundial, “o uso sustentável dos recursos do oceano para o crescimento económico” –, devido principalmente à sua dimensão, tradição marítima e larga área de mar profundo.
Falar de mar profundo tanto pode referir-se à distância entre a superfície e o fundo do mar, como à distância em relação à costa. E é onde, de acordo com Francisco Campuzano, investigador e gestor de projectos no laboratório colaborativo português +Atlantic CoLab, “há uma grande falta de exploração”. “Naturalmente interessa-nos mais a costa porque somos directamente afectados pelas ondas e as correntes para o uso dos portos ou a aquacultura, que ainda é muito costeira.”
No entanto, “as condições do oceano acabam por influenciar a própria costa”, pelo que importa “garantir que todas as águas têm uma óptima qualidade” para o cumprimento da Directiva-Quadro Estratégia Marinha (DQEM), o principal instrumento da UE para garantir o bom estado ambiental do meio marinho, que obriga os Estados-Membros à elaboração das já enunciadas estratégias. “O nosso problema é que não temos ainda uma tecnologia que nos permita estar presentes de forma permanente longe da costa”, atenta o oceanógrafo formado na Universidade de Las Palmas, nas Canárias.
As campanhas oceanográficas em navios, que recolhem amostras de água em diferentes pontos para depois as analisar em laboratório, são o método mais convencional de monitorização do oceano. Ramiro Neves, professor e investigador do Centro de Ciência e Tecnologia do Ambiente e do Mar (Maretec) do Instituto Superior Técnico de Lisboa, explica que “isto é caro, e se o navio conseguir medir uma centena de pontos já é muito. Mas uma centena de pontos para caracterizar um oceano é pouquíssimo”, constata.
Os dois investigadores e respectivas instituições cruzaram-se com outros parceiros nacionais e internacionais (espanhóis, franceses, irlandeses e ingleses) no projecto iFADO, financiado em 4,2 milhões de euros pelo programa europeu Interreg Espaço Atlântico 2014-2020.
A equipa propôs-se a conjugar as técnicas tradicionais de monitorização do oceano com novas tecnologias autónomas de recolha de dados, complementando a informação com programas de modelação e dados de satélite já existentes. Em seis anos de projecto – prolongado devido à pandemia –, que terminou em Junho deste ano, a informação recolhida através da comparação entre os dados de satélite e as observações in situ neste projecto contribuiu para aumentar em cerca de 1% o volume de dados existentes a nível mundial sobre esta região do Atlântico.
Os veículos autónomos utilizados podem ser gliders (de formato semelhante a um torpedo e que analisam o perfil vertical da coluna de água), veículos de superfície como os Waveglider e Autonaut (semelhantes a pequenas pranchas que permanecem sempre à superfície, operadas a energia solar e das ondas) ou ainda mini-boats (veículos não pilotados). Registam de forma automática os perfis de temperatura, salinidade, oxigénio e clorofila na água, e alguns podem ainda captar imagens ou ruído marinho e a presença de lixo.
A circulação oceânica, “que é o que determina tudo”
“No oceano, para haver produção biológica é preciso que haja interacção entre a camada superficial e o oceano mais profundo, que é onde estão os nutrientes que alimentam o fitoplâncton que alimenta a vida”, explica Ramiro Neves. O aumento da temperatura da água altera a sua salinidade – “quanto mais a água evapora, mais salgada fica” –, a densidade da água e consequentemente a circulação oceânica, “que é o que determina tudo”, diz o investigador do Maretec. “Se aquecermos muito a superfície do oceano, a tendência é desligarem-se as camadas da superfície da do fundo do oceano”, o que empobrecerá a produção de pescado. As boas condições do Atlântico são, para Ramiro Neves, o que faz de Portugal um dos maiores consumidores de peixe do mundo.
Através dos valores da clorofila na água, também possível de captar através de satélite, chega-se à avaliação aproximada do fitoplâncton. Com a ajuda dos modelos matemáticos, que descrevem a hidrodinâmica – “o movimento da água e o transporte das várias propriedades” –, “é possível observar ou predizer o que vai acontecer no oceano na componente vertical, algo que as outras tecnologias têm maior dificuldade [em calcular]”, completa Francisco Campuzano.
“Muitas vezes, quando falamos da economia azul, parece que é uma coisa relativamente nova”, reflecte o investigador espanhol. “E, à excepção das energias renováveis e da exploração dos minérios submarinos, o resto é uma economia que já existia, como os portos, a pesca, a aquacultura e o turismo. Todo esse tipo de economia acaba por beneficiar do conhecimento que temos dos processos que acontecem no oceano.” A aquacultura e as energias renováveis podem beneficiar nomeadamente do trabalho feito pelo iFADO nas áreas de estuário do Tejo e do Sado, aponta Campuzano.
Todos os dados recolhidos no âmbito do projecto serão fornecidos a bases de dados globais e vão servir para apoiar estes vários sectores, bem como as estratégias marítimas ao abrigo da DQEM, esclarece o investigador do Maretec Ramiro Neves, que reconhece “uma certa inércia” dos organismos públicos que têm a responsabilidade da monitorização em aplicar novas tecnologias e estabelecer “ligação entre entidades, que normalmente vivem muito viradas para os seus programas internos”. “O oceano está sempre a mover-se. Da água que temos aqui em Portugal, uma boa parte vem do norte de Espanha. Portanto, as autoridades portuguesas têm interesse em saber o que se passa no norte de Espanha para poderem planificar melhor o que fazem aqui”, exemplifica.
"Temos um oceano imenso à porta de casa"
A missão PAAnoramic, “a mais ambiciosa do projecto”, segundo Francisco Campuzano, ainda está a decorrer. Vários gliders estão a fazer a sua viagem pelo arco Atlântico, da Irlanda às Ilhas Canárias. O último veículo programado será lançado “nos próximos dias” e vai monitorizar as águas portuguesas durante dois a três meses, antes de rumar a sul até às Canárias, explica o investigador do +Atlantic CoLab. “O glider deverá passar perto de bancos submarinos como o de Gorringe [próximo do Cabo de São Vicente] e o das Ilhas Selvagens [no arquipélago da Madeira]. Tentamos que a missão passe por Áreas Marinhas Protegidas que não conseguimos frequentemente a monitorizar”, aponta Campuzano. “Por razões económicas”, acrescenta, “não conseguimos ter este dispositivo todo o tempo no oceano, mas conseguimos completar um pouco a imagem do que lá existe”.
O projecto ultrapassou obstáculos diplomáticos que reflectem a falta de cooperação anterior entre os cinco donos de um mesmo oceano. “Na última missão que estamos a completar agora, a PAAnoramic, tivemos algumas dificuldades em ter um veículo autónomo do Reino Unido a monitorizar águas portuguesas e espanholas. Já há protocolos para este tipo de missões com navios, mas com os veículos autónomos descobrimos que tínhamos de envolver os ministérios dos Negócios Estrangeiros para dar a autorização”, conta Francisco Campuzano.
A troca de conhecimento entre países – “por exemplo, investigadores portugueses têm participado em campanhas financiadas pelo Reino Unido, e depois essas amostras são analisadas por parceiros cá de Portugal” – é, para o oceanógrafo, a maior conquista do iFADO, também ao nível das instituições. “Na Ospar”, convenção marinha regional constituída pelos países do meio marinho do Atlântico Nordeste, “temos conseguido incorporar equipas de Portugal, Espanha e Irlanda, que são países-membros, em grupos de trabalho em que anteriormente não participavam”, nota o colaborador do +Atlantic CoLab.
“Todos temos uma dificuldade semelhante, porque no arco atlântico temos um oceano imenso à porta de casa. É muito difícil conseguir monitorizar esse oceano de forma individual. O que tentámos fazer foi explorar ligações para podermos fazer essa monitorização de forma mais efectiva, partilhando as melhores práticas e recursos, pondo em prática conhecimento e experiência”, reflecte Campuzano, que admite com optimismo: “Acho que é um fruto que vai perdurar depois do projecto.”
Mais na série Mudar o Atlântico em quatro vagas:
- Mudar o Atlântico em quatro vagas (2): Enfrentar o lixo marinho
- Mudar o Atlântico em quatro vagas (3): Inovar do mar ao prato
- Podcast: Mudar o Atlântico em quatro vagas. Conhecer o oceano
- Mudar o Atlântico em Quatro Vagas (4): Potenciar a energia azul
Artigo alterado às 12h35 de 3 de Outubro, para corrigir o aumento no volume de dados existentes a nível mundial sobre a região atlântica da Europa