Insultos silenciosos

Cada uma daquelas palavras incompreensíveis o ofendia. Se fosse um marmanjo qualquer na rua, arregaçava as mangas e resolvia o assunto de uma penada, mas a situação era diferente, deixava-o desarmado.

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Abrindo o livro numa página ao acaso, tal como o filho fizera uns minutos antes, tentou ler algumas frases. Não tinha mais destreza do que o Carlos. Leu também parte da badana onde se anunciava a profundidade do ensaio e se gabava a sagacidade dos argumentos e o engenho da sua exposição, sem descurar a estética e a forma, culminando com o anúncio do maior tesouro daquela obra, o desvelar de um sentido para a vida. Quem seria o autor, o tal Espinosa? A badana não tinha uma fotografia do autor. O Severo levantou-se do banco, aproximou-se da Luzia, estava ela a picar uma cebola para a sopa, e deu-lhe com o livro na cara, onde é que o gaiato arranjou isto?, perguntou ele. A Luzia, recuperando da agressão, disse nunca ter visto tal coisa lá em casa. O Severo olhou para o livro e revirou-o nas mãos, pensativo. Tal como o filho, também ele sentiu um estranho fascínio, embora tenha a isso ajuntado animosidade, raiva e ainda receio: aquele objecto estava a insultá-lo, a chamá-lo estúpido. Cada uma daquelas palavras incompreensíveis o ofendia. Se fosse um marmanjo qualquer na rua, arregaçava as mangas e resolvia o assunto de uma penada, mas a situação era diferente e deixava-o desarmado, impotente, nunca tinha sido insultado silenciosamente e não sabia como reagir. Bateu com o punho na capa, levemente, três ou quatro vezes, cerrando os dentes. Não fazia sentido esmurrar o livro, espancá-lo, como fazia à Luzia, só iria tornar a sua situação ainda mais ridícula. Seria o Carlos capaz de compreender o conteúdo do livro? Pensou em chamá-lo para lho perguntar, mas teve receio de, caso isso se confirmasse, sentir-se ainda mais envergonhado e vexado, desta feita por saber menos do que o filho. Pegou no livro para o atirar para a lareira, mas deteve-se. Guardou-o no topo do móvel da entrada, onde também guardava a caçadeira, recusando ser vencido por um monte de folhas impressas, haveria de perceber aquilo para depois o poder atirar para a lareira, sem se sentir insultado. Esse dia jamais chegaria, mas aquele livro haveria ainda de estragar a vida de algumas pessoas. Incluindo a do Urso.

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