Uma reflexão sobre a leitura na era do TikTok

A nova geração parece vir democratizar a leitura: ler já não é um acto quase erudito, mas um tipo de entretenimento como outro qualquer.

Foto
Megafone P3: Uma reflexão sobre a leitura na era do TikTok picjumbo.com/Pexels
Ouça este artigo
00:00
04:10

Durante os anos de adolescência da minha geração, limítrofe entre millennials e Gen Z, ler era uma actividade diferenciada. Havia um certo prognóstico generalizado sobre o fim dos livros, face a todo o desenvolvimento tecnológico e massificação do entretenimento audiovisual das últimas décadas.

“As coisas começaram a ter massa”, como já previa Ray Bradbury em Fahrenheit 451 (1953): “E porque tinham massa, tornaram-se mais simples (…) Livros abreviados. Condensações, Resumos. Tablóides”. Supostamente, já ninguém queria ler. Quem lia era uma excepção, uma alma velha. A indústria dos livros estava em perigo.

Porém, parece que o TikTok salvou a literatura. Não a aplicação em si, mas o fenómeno que se construiu através de comunidades online que se criaram na última década — primeiro o bookstagram, depois o booktok.

A indústria que estava a morrer face à instantaneidade do entretenimento tecnológico parece ter sido salva pelo mesmo, ou pela cultura de influencers criada no mundo digital (além de contar com a portabilidade que os eReaders trouxeram para a literatura). Aliado a uma nostalgia sempre crescente por tudo aquilo considerado old school, ler voltou a ser fixe — tornando-se, até, trendy.

Mas a literatura actual parece também passar por um certo tipo de metamorfose. O fenómeno de massificação comercial que se vê no cinema e na televisão parece alastrar-se para a literatura, trazendo uma ligeireza de conteúdo semelhante à que se vê na indústria audiovisual.

Os tops de venda de hoje em dia estão repletos de nomes como Colleen Hoover e o que provavelmente mantém a estabilidade financeira de algumas editoras são romances do género "young adult". Muitas das autoridades literárias hoje em dia são jovens populares em redes sociais. “Recomendações do BookTok” já começou a ser uma categoria em algumas livrarias e, este ano, a Feira do Livro de Lisboa contou com alguns eventos com bookstagrammers.

Em paralelo, assiste-se também ao fenómeno de "tropification", no qual as narrativas literárias são reduzidas aos seus tropos mais evidentes (“enemies to lovers”, “slow burning romance”, etc.), tornando-se numa mera estratégia de marketing, que leva alguns autores a adoptarem receitas formulaicas nas suas histórias.

Isto parece quase sintomático da nossa experiência tecnológica, tão baseada em hashtags, algoritmos e palavras-chave. Tudo parece ser sintetizado, reduzido às suas partículas mais elementares para um acesso mais rápido e eficaz, sem grande preocupação com a arte da escrita. Porém, no meio disso tudo, onde fica a complexidade e a polissemia inerentes à arte da literatura?

Os livros perduram, não foram queimados como em Fahrenheit 451, mas ainda assim a “condensação” prevista por Bradbury parece persistir. No fundo, a indústria dos livros é como outra indústria qualquer numa sociedade capitalista: o que se quer é vendas, números, rentabilidade.

A experiência de trabalhar como livreira mostrou-me isso claramente: ter de impingir certos livros aos clientes como se fossem peças decorativas em promoção foi das tarefas mais desagradáveis que já tive de exercer.

Além disso, grande parte dos clientes eram adultos de classe mais abastada, visivelmente à procura das novas tendências, a fim de manter uma certa faceta de erudição (o que é irónico, tendo em conta que raramente prestavam atenção à literatura de facto considerada erudita).

Em contrapartida, a nova geração parece vir democratizar a leitura: ler em si já não é um acto quase erudito, mas um tipo de entretenimento como outro qualquer. Parece-me que, por mais que isto traga também os seus pontos negativos, acaba por ser uma solução melhor à questão da sobrevivência dos livros, ao invés de se persistir na literatura enquanto erudição de fachada.

Lê-se mais e com mais pressa, mas talvez também com mais prazer do que gerações anteriores, que viam nos livros um fardo do currículo escolar (muito devido à abordagem restritiva do mesmo) ou uma afirmação de superioridade quase elitista.

As tendências do booktok e do bookstagram podem nem sempre equivaler a literatura enquanto objecto artístico (que por sua vez é também uma categorização bastante subjectiva e debatível), mas parecem conseguir manter viva uma prática analógica que se pensou perdida, encontrando uma maneira de fazer face à instantaneidade tecnológica que rege a sociedade actual — com a consequência directa de representar também um trunfo económico para a indústria dos livros.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários