Seis jovens a lutar pela acção climática em Estrasburgo: “Nada disto é política. É ciência”
Cláudia, Martim, Mariana, Catarina, Sofia e André juntaram-se em 2017, após os incêndios em Pedrógão Grande e Mação. No Tribunal Europeu dos Direitos Humanos acusaram 32 países de inacção.
Fez-se história esta quarta-feira, numa audiência em que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) ouviu os argumentos de um dos maiores casos alguma vez analisados pelo colectivo de juízes, movido por um grupo de seis adolescentes e jovens portugueses contra 32 Estados do Conselho da Europa. Alegam que a inércia dos governos em matéria climática está a ter efeitos no seu quotidiano que se traduzem em violações dos seus direitos humanos.
As posições dos Estados já tinham sido transmitidas nas respostas escritas às questões do Tribunal na análise preliminar do caso, como noticiou o PÚBLICO há poucas semanas. Mas ouvir de viva voz os argumentos dos Estados, descreve Cláudia Agostinho, a mais velha dos seis jovens (hoje com 24 anos), “é muito triste”. “Os governos acabaram de dizer que tudo o que está a acontecer à nossa volta não é importante. Estão a minimizar os impactos que as alterações climáticas têm nos nossos direitos humanos”, afirmou a jovem enfermeira, à saída do tribunal.
Ao seu lado, André Oliveira, de 15 anos, concorda: “É chocante a tentativa dos países de ignorar as provas que lhes pusemos à frente e trivializar as ameaças que enfrentamos”, lamentou. “Mas continuo com esperança de que o Tribunal vai compreender a urgência desta situação e decidir a favor do nosso caso.”
“Nenhum Governo submeteu provas para contestar as nossas provas de que as políticas actuais estão em linha com um cenário catastrófico de 3 graus Celsius de aquecimento durante o período de vida destes requerentes”, concluiu o advogado Gerry Liston, da equipa legal da Global Legal Action Network (GLAN), entidade que tem feito o acompanhamento jurídico dos jovens.
Nenhum dos representantes dos Estados aceitou prestar declarações à imprensa.
“Mariana, estás bem?”
Antes da audiência, o nervoso entre os jovens é quase palpável, mas as famílias estão por perto para apoiar. “Mariana, estás bem?” A pergunta é dirigida à pequena Mariana, a mais nova do grupo, com apenas 11 anos. Catarina Mota e Cláudia Duarte Agostinho, as mais velhas, e vizinhas em Leiria, conversam no seu lugar na segunda fila. Os jovens são observados de perto por uma pequena nuvem de fotojornalistas, mantida à distância por seguranças (e dissipada assim que os juízes entram na sala).
O dia em tribunal começou cedo, com a chegada dos jovens ao TEDH. “Estes últimos seis anos foram repletos de desafios”, afirmava, cerca das 7h30 da manhã (hora local), Cláudia Agostinho. “O que tentámos fazer foi marcar uma posição: dizer aos Governos que estamos realmente desiludidos e precisamos que tomem acções e medidas urgentes, para que possamos ter o futuro que merecemos, um futuro seguro.”
Com este processo, submetido em Setembro de 2020, os jovens esperam que o TEDH reconheça que alguns direitos previstos na Carta Europeia dos Direitos Humanos estão a ser violados em resultado da insuficiência dos Estados em matéria de acção climática. Nomeadamente, que as alterações climáticas causadas pela acção humana — e que ainda é possível mitigar, como têm mostrado os diversos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) ao longo dos anos — estão a interferir com o direito à vida, o direito à vida privada, à proibição de tortura e à proibição de discriminação (neste caso, em função da idade).
A Grande Chambre do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos estava à pinha quando, cerca das 9h15, entraram os juízes que compõem a sessão plenária do TEDH — 17 efectivos (incluindo a portuguesa Ana Guerra Martins) e cinco substitutos — para ouvir as diferentes partes no chamado tribunal pleno.
Os Estados foram os primeiros a apresentar os seus argumentos, numa posição conjunta de três dezenas de países (os Países Baixos decidiram apresentar os seus argumentos à parte), dividida em três argumentos: a falta de jurisdição, o não esgotamento das vias judiciais nacionais e a ausência do estatuto de vítima.
Jovens “pedem ao tribunal para agir como legislador”
O advogado britânico Sudhanshu Swaroop abordou o primeiro argumento legal da defesa, focado na questão da jurisdição. O caso dos jovens, afirma, não é bem-sucedido a estabelecer uma ligação entre o território onde residem e a responsabilidade dos 32 países, já que os Estados não exercem poder ou controlo territorial que possa ser ligado aos direitos dos peticionários.
“Pedem ao tribunal para agir como legislador, em vez de juiz, e legisle para um desafio global, sem ter jurisdição global”, alega o advogado. O representante britânico recorda ainda que uma decisão do tribunal favorável aos jovens poderá ter “consequências sociais e económicas profundas para os estados”.
Depois da apresentação da procuradora belga Isabelle Niedlispacher sobre o não esgotamento das vias judiciais nacionais, o procurador português Ricardo Matos atacou o estatuto de vítima dos jovens — que os Estados dizem ser inexistente —, afirmando que o dano alegado é demasiado abstracto.
As provas científicas fornecidas no processo, afirmou Ricardo Matos, estabelecem os impactos globais das políticas climáticas, mas não provam os alegados danos pessoais nos jovens em particular. Além disso, os requerentes não sofreram danos pessoais relevantes em resultado dos incêndios em 2017, disse, sugerindo que o único dano directo aos requerentes foi o encerramento temporário da escola.
Governos podem deixar jovens de "mãos vazias"
A advogada Alison Macdonald, principal representante dos jovens, começou por explicar que o que traz estes jovens a tribunal é “o preço que eles estão a pagar pelo fracasso dos Estados” na acção climática. “Os governos estão a exigir que estes jovens abandonem o Tribunal de mãos vazias”, afirmou. “Se [os juízes] o permitirem, isso marcará o fim da protecção efectiva dos direitos humanos na Europa, tal como foi concebida há 70 anos.”
Macdonald lembrou ao plenário de juízes as consequências graves das alterações climáticas, citando os relatórios do IPCC e os sucessivos alertas do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. “Nada disto é política. É ciência.”
A advogada Amy Sander, que também representa os jovens, tomou a palavra para refutar os argumentos dos Estados de que o TEDH não tem capacidade para definir um nível de acção climática mínimo para os Estados cumprirem as suas obrigações em matéria de direitos humanos no contexto das alterações climáticas. “O Tribunal está numa posição única para transformar este ano de calor escaldante num ano de ambição escaldante."
Jovens pedem "uma revolução da jurisprudência”
Depois de apresentados os argumentos da defesa e as partes assistentes, os juízes colocaram as suas perguntas. Uma das grandes questões referia-se ao recurso dos jovens ao TEDH sem passarem primeiro por tribunais nacionais. A juíza finlandesa Pauline Koskelo, a primeira a tomar a palavra, pediu aos requerentes para esclarecerem se esta decisão era baseada no argumento de que a exigência de “esgotar as vias nacionais” não se aplica (excepcionalmente) a este caso, ou antes se as soluções existentes são ineficazes.
Foram também colocadas questões relacionadas com jurisdição, ou seja, quais são as obrigações legais e a que instância cabe escrutinar a sua aplicação. Mas não apenas no sentido de fugir à admissibilidade do caso. Perguntam também: como propõem, então, os Estados determinar a abrangência das suas responsabilidades em matéria climática?
Nas suas respostas às questões dos juízes, os representantes de ambas as partes trouxeram variações das respostas já dadas na audiência e em momentos anteriores do processo.
Sudhanshu Swaroop, debruçando-se sobre as questões relacionadas com jurisdição — como delimitar o âmbito de actuação do tribunal — alertou que os requerentes “não estão a pedir uma evolução da jurisprudência, mas sim uma revolução da jurisprudência”. Além disso, uma eventual expansão da jurisdição do Tribunal “criaria incerteza jurídica e desordem”.
O procurador português Ricardo Matos esclareceu quais são as vias legais possíveis em Portugal, como as acções populares ou o recurso à Provedoria de Justiça (se bem que não tenha dado exemplos concretos de casos relacionados com alterações climáticas).
KlimaSeniorinnen, as “avós do clima”, vieram dar apoio
O Estado português, afirmou o advogado Gerry Liston, escolheu manter-se “ao lado dos outros Estados, alegando que aquilo que os jovens requerentes têm descrito é apenas fruto da sua imaginação”. “Isso é gaslighting”, afirmou, referindo-se a uma expressão inglesa que se refere à manipulação psicológica que leva a que a vítima questione a validade dos seus próprios pensamentos. “E faz parte de uma estratégia mais abrangente dos governos de que o caso seja considerado não admissível”, resumiu Liston.
Cláudia Agostinho lamentou ainda que, “fora do tribunal”, os governos digam “todas as coisas correctas sobre a emergência climática”, mas dentro do tribunal não: "Hoje estão a negar a realidade de que o que estamos a viver vai tornar-se ainda pior.”
Cerca das 17h (hora local), o dia terminou como começou: com um abraço das “KlimaSeniorinnen”. De manhã, à porta do TEDH, o grupo de jovens portugueses tinha sido recebido por este grupo de mulheres reformadas que são protagonistas de outro caso climático — estão a processar o Estado suíço por não fazer o suficiente para garantir um clima estável — que está a ser analisado pelo Tribunal e foi ouvido em Março.
Aqui pode ouvir a gravação integral da audiência desta quarta-feira no TEDH.