Um antigo celeiro em Mértola está a transformar-se numa estação biológica internacional
A Estação Biológica de Mértola é a primeira de cinco que a Biopolis prevê pôr a funcionar até 2030. O Atlântico, as florestas tropicais e o deserto serão os outros biomas alvos do projecto português.
O antigo celeiro de Mértola, que pertenceu à EPAC (Empresa Pública de Abastecimento de Cereais), está num processo interno de metamorfose. Há tapumes, andaimes e guindastes à volta do edifício, e trabalhadores em actividade numa cálida manhã de Julho. Por uma questão de segurança, não é possível entrar no edifício para observar de perto a transformação em curso e antecipar o que aí vem. A única coisa que denuncia o futuro do celeiro é uma grande faixa de tecido quadrangular, exposta numa das paredes, com as palavras “projecto de requalificação” e “Estação Biológica de Mértola”.
“O edifício vai fazer as pazes com algum mal que se fez à paisagem”, assume Nuno Ferrand, biólogo e director da associação Biopolis (parceira do projecto Azul do PÚBLICO), que nos acompanha no breve passeio do lado esquerdo do rio Guadiana, onde está instalado o celeiro, e que tem vista privilegiada para o perfil do centro de Mértola, com as suas ruas e casas encaixadas, que se vão empilhando até ao topo, onde sobressaem a Igreja Matriz e, um pouco mais acima, o castelo.
Se o antigo celeiro fazia parte de uma visão económica, de produção e de exploração daquele território – o Alentejo cerealífero do Estado Novo –, a sua nova vida representará uma ideia de conhecimento, pesquisa e, também, de futuro, que se encontra repleta de desafios.
Mértola está na linha da frente de um Mediterrâneo que vive em pleno as alterações climáticas. Além do despovoamento típico do interior português, o município sofre ainda com a desertificação acelerada dos seus solos. Estando instalada naquele território, a estação biológica quer ajudar a encontrar soluções contra os problemas de desertificação, ao mesmo tempo que se encontra numa situação privilegiada para investigar a biodiversidade mediterrânica no contexto cada vez mais emergente da mudança climática. Nesse movimento, o projecto também vai trazer uma nova dinâmica para a vila.
“A estação biológica é uma lança avançada num território sobre o qual queremos saber mais, sobre o qual queremos contribuir mais”, diz Nuno Ferrand.
A visão do biólogo mescla-se com a da Biopolis, que une o Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio-InBio) da Universidade do Porto, onde Ferrand também é director, a Universidade de Montpellier, em França, e a Escola de Negócios da Universidade do Porto, com o objectivo de se tornar um “dos melhores centros de excelência a nível internacional nas áreas de biologia ambiental, investigação de ecossistemas e biodiversidade agrícola”, segundo o site da Biopolis.
Até 2030, o programa da Biopolis quer ter, além da estação de Mértola, mais quatro estações biológicas, outra no norte de Portugal, no bioma Atlântico, duas em florestas tropicais, uma em Cabinda, no norte de Angola, e outra na ilha do Príncipe, que contém uma versão insular das florestas tropicais, e uma quinta estação no deserto de Moçâmedes, no sul de Angola. Deste modo, uma boa parte dos mais importantes ecossistemas do mundo fica contemplada.
Nestas estações, o plano é ter uma equipa fixa de investigadores e técnicos, mas também a visita de cientistas e estudantes de todas as partes do mundo, num fluxo constante, dinâmico, que vai respondendo às necessidades científicas da comunidade internacional.
“A ideia de um conjunto de estações biológicas internacionais como uma espécie de grande infra-estrutura de âmbito internacional é fundamental para alicerçar a capacidade da nossa investigação, que queremos que seja única, excelente a nível internacional”, vaticina Nuno Ferrand.
Essa vontade não está dissociada daquilo que o investigador define ser uma agenda de cariz mundial, para a qual o trabalho que vai ser feito nestas estações estará a contribuir: “A agenda do planeta é a compatibilização de oito mil milhões de habitantes com aquilo que o planeta pode dar.” Ou seja, integrar a sustentabilidade planetária e o bem-estar das populações humanas num mundo ameaçado pela degradação dos ecossistemas, pela redução da biodiversidade, com a extinção de muitas espécies, pela poluição ambiental e pelas alterações climáticas, que tingem os desafios anteriores com uma acrescida camada de complexidade.
Mediterrâneo, construção humana
Em Mértola, há três vértices importantes de investigação aos quais a estação quer dedicar-se: a biodiversidade, no contexto do Mediterrâneo, o estudo da agricultura e do seu impacto, quer seja na sua versão mais intensiva, quer nas novas tendências da agro-ecologia, e, em terceiro lugar, os recursos silvestres, importantes para actividades como a caça, a pesca, a apicultura, a extracção de cogumelos e a exploração de plantas.
“Temos este grande desafio que é a compatibilização disto tudo”, afirma ao PÚBLICO Paulo Célio Alves, biólogo do Cibio e colega de Nuno Ferrand, que é, desde Abril, o presidente da direcção da Associação Estação Biológica de Mértola (AEBM). Embora o celeiro ainda esteja em obras — os investigadores acreditam que o edifício ficará pronto em Julho de 2024 —, a estação já está em actividade, com estudantes estrangeiros a visitarem Mértola e um pequeno laboratório provisório, instalado numa sala do edifício da Câmara Municipal de Mértola, que visitámos antes de nos instalarmos no terraço interior do edifício, para uma conversa à sombra.
Parte do município de Mértola está integrada no Parque Natural do Vale do Guadiana, que tem quase 70 mil hectares, e é, nas palavras de Paulo Célio Alves, um “hotspot de biodiversidade”. Animais como o veado, o saramugo, a cegonha-preta, o javali, a águia-imperial-ibérica, a lebre-ibérica, o gato-bravo e, mais recentemente, o lince-ibérico, muitos deles vistos como espécies-bandeira do Mediterrâneo, podem ser encontrados ali.
Por isso, “como é que se consegue preservar a biodiversidade mantendo as práticas agrícolas e como é que conseguimos também que as pessoas continuem a ir explorar os recursos silvestres, como sempre o homem fez?”, questiona o biólogo. “O Mediterrâneo é uma construção humana”, recorda Nuno Ferrand. “Não há aqui absolutamente nenhuma Amazónia, toda a paisagem é moldada pelo homem nos últimos 10 mil anos.”
Tanto Nuno Ferrand como Paulo Célio Alves têm feito investigação na região de Mértola há cerca de duas décadas. Além da riqueza local da biodiversidade, a cumplicidade com a região foi outra razão para os investigadores escolherem o município como local para erigir a estação biológica que vai estudar o bioma mediterrânico.
“Nós temos um chapéu que é: 'Mértola Laboratório para o Futuro'”, diz ao PÚBLICO Rosinda Pimenta, vice-presidente e vereadora socialista da Câmara Municipal de Mértola, que também faz parte da direcção da AEBM, e conhece bem a realidade da região. Perante os problemas do despovoamento, da desertificação e das alterações climáticas, a Câmara tem uma visão clara para o município, que vai da criação de hortas nas escolas até a um perímetro florestal, onde se testam técnicas de regeneração da floresta. A estação biológica está dentro dessa visão.
“A lógica da estação biológica é perceber que podemos mitigar a questão da demografia com uma visão pouco conservadora, potenciando esta capacidade que Mértola tem de gerar fluxos de pessoas associadas à cultura e à ciência”, diz a responsável, referindo-se a um trajecto iniciado há mais de 40 anos pelo arqueólogo Cláudio Torres, que fundou o Campo Arqueológico de Mértola.
Mas o novo projecto tem uma ambição maior, não só porque tem a capacidade de atrair a nível internacional estudantes e investigadores, como as respostas que pode vir a dar a nível da biodiversidade, da agricultura e da exploração de recursos naturais, no contexto da crise climática, têm outro alcance.
“A estação biológica é o processo com mais escala que temos porque a sua dimensão não é uma dimensão de Mértola, é a dimensão em primeira instância do Baixo Alentejo, mas é a dimensão do semiárido mediterrânico, e depois é a dimensão global de outros territórios de semiárido que têm os mesmos desafios que nós”, contextualiza Rosinda Pimenta.
“Estamos a atravessar um enorme período de seca e o problema da água está no centro de todas as questões”, aponta a autarca. Tudo o que venha a ser definido como boas práticas, da agricultura à regeneração de solos e florestas, a partir da investigação feita no contexto da estação, terá “que escalar para políticas públicas”, defende. “Para Mértola, a estação responde aos desafios locais. Mas é o nosso contributo, enquanto território, para a resolução dos grandes desafios globais.”
À procura de massa crítica
A estação integra um investimento de cerca de dez milhões de euros – uma boa parte vinda de fundos europeus –, que inclui também a instalação do Arquivo Municipal de Mértola, com documentos históricos e arqueológicos da região, e a Galeria da Biodiversidade de Mértola, um espaço expositivo sobre a vida natural da região que vai seguir o mesmo modelo da Galeria da Biodiversidade instalada na Casa Andersen, no Porto. “Vamos ter a raiz de uma azinheira para mostrar o que não se vê e com isso fazer uma alusão à importância do solo”, exemplifica Nuno Ferrand.
Os três projectos serão instalados no complexo do celeiro — construído maioritariamente em 1938 e que teve uma expansão em 1956. Enquanto a estação será incorporada no edifício principal do celeiro, a galeria e o arquivo ficarão no espaço dos armazéns. O edifício principal vai albergar laboratórios para o trabalho de investigação, um auditório, uma sala e um conjunto de quartos para os estudantes e investigadores que estão de visita.
“Queremos ter aqui uma massa crítica elevada que discuta estes temas, mas que temporalmente seja realmente representativa. Que haja várias dezenas de pessoas a coincidir”, diz Paulo Célio Alves.
Esse tipo de encontros já começou a ocorrer. “Eu trago do Porto quatro estudantes da Universidade de Cornell, [nos Estados Unidos], a Rosinda, num programa com a Embaixada dos Países Baixos, está a receber seis estudantes. Ontem estiveram todos juntos. Hoje, amanhã e sexta vão trabalhar em desafios da sustentabilidade”, exemplifica o biólogo.
Há duas cátedras que irão alimentar a equipa fixa do centro: uma será a Cátedra Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável, que nasce de um acordo entre a Universidade do Porto e a Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA), e uma segunda cátedra estará ligada à biodiversidade e a caça.
As cátedras financiarão um investigador principal que irá montar um grupo de investigação associado à estação. No caso da cátedra da EDIA, cujo concurso para o investigador principal está aberto até 30 de Setembro, o financiamento para a gestão da equipa será de “180 mil euros anuais” durante três anos, explica Paulo Célio Alves.
Haverá outros investigadores e técnicos que farão parte do núcleo fixo da estação. Mas há um objectivo de se criar uma ligação ao entorno, que se interconecta com as artes, o turismo, a cultura. “A estação também está aberta à comunidade para encontros, tertúlias, vamos ter uma parte social”, explicita Nuno Ferrand, que quer um sítio aberto para quem quiser entrar, tomar um café, conversar com um investigador que esteja a passar.
Questões infinitas
Das cinco estações biológicas que a Biopolis tem projectadas, a de Mértola é a que está mais avançada. “A estação da Branda de São Bento do Cando está a ser trabalhada pelos arquitectos. Vamos dar dois ou três anos para a estação estar a trabalhar em pleno”, prevê Nuno Ferrand, semanas depois da visita a Mértola, numa conversa por telefone.
São Bento do Cando fica na freguesia da Gavieira, município de Arco de Valdevez, em pleno Parque Nacional Peneda-Gerês, já perto da fronteira com Espanha. As brandas são conjuntos de habitações ou pequenas aldeias que ficam em zonas mais altas, onde os pastores e as suas famílias passavam a temporada do Verão para que os rebanhos tivessem acesso ao pasto de altitude. Na temporada fria, as populações voltavam para aldeias que ficavam a menores altitudes, chamadas as inverneiras, para passarem o Inverno.
Hoje, a aldeia já não serve mais aquele objectivo, mas a Branda Científica de São Bento do Cando pretende actualizar o seu papel. “Numa versão moderna deste conceito, a branda será uma aldeia de Verão para os cientistas do Biopolis e das várias instituições participantes”, lê-se num comunicado do Cibio. O projecto vai ter o apoio da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, e vai ser liderado pelo biólogo Henrique Miguel Pereira, biólogo do Cibio e antigo director do Parque Nacional Peneda-Gerês.
Tal como em Mértola, em São Bento do Cando também há a adaptação de estruturas arquitectónicas em desuso — desta vez algumas das casas da aldeia — para novas funções. No caso da ilha do Príncipe, o princípio replica-se. “A estação biológica vai ficar associada a uma antiga plantação colonial”, refere Nuno Ferrand.
O Príncipe faz parte de uma cintura de ilhas tropicais a nível mundial que tem características próprias diferentes das grandes florestas tropicais, como as do Congo e da Amazónia. A escolha daquela ilha deve-se “há existência de uma história e línguas comuns”, sublinha o biólogo. Além disso, o Príncipe “tem imensa visibilidade”.
Neste caso, a Biopolis associou-se à empresa holandesa Supernova Technologies, liderada pelo empresário Rombout Swanborn, que é também fundador da Africa’s Eden. Esta empresa tem uma série de hotéis na região oeste da África Central, incluindo na ilha do Príncipe, e quer financiar a conservação daqueles biomas a partir das receitas obtidas do turismo.
A outra estação biológica para estudar a floresta tropical, desta vez no continente, ficará no município de Belize, em Cabinda, em Angola, numa colaboração com a Universidade 11 de Novembro e com as autoridades do governo regional de Cabinda e também terá apoio da Supernova Technologies. “Os ecossistemas tropicais ficam assim cobertos com estas infra-estruturas montadas nos próximos anos”, assegura Nuno Ferrand.
Mais atrasada está a estação que ficará no coração do Parque Nacional do Iona, no sul de Angola, no deserto de Moçâmedes (a parte norte do deserto do Namibe), habitat da incrível planta Welwitschia mirabilis.
“As cinco estações serão o negócio principal do Biopolis”, afirma o biólogo, acrescentando que tirando o complexo de Mértola, as outras quatro custarão entre três e cinco milhões de euros. “Cada estação terá um director, uma direcção e estará associada a um grande programa de desenvolvimento de capacidades, de transferência e difusão de conhecimento, queremos a ligação do turismo à ciência. São aspectos inovadores.”
O Cibio tem uma tradição de olhar para a biodiversidade desde o ponto de vista da diversidade genética até às relações que se dão dentro dos ecossistemas, do micro ao macro, portanto. Com cinco “lanças avançadas” para ecossistemas tão diversos e tão representativos do planeta, que questões científicas poderão ser feitas? “São infinitas, desde como se adaptam as espécies até ao porquê de existirem aquelas características nas espécies típicas que constituem os ecossistemas”, responde Nuno Ferrand.
Mas o biólogo volta à “agenda do planeta”, que é premente tanto em Mértola, como a milhares de quilómetros daqui, em África, como nos quatro cantos do mundo. “Uma das perguntas fundamentais é essa compatibilização entre as pessoas e a biodiversidade”, reflecte. “Como conseguimos assegurar o desenvolvimento harmonioso das comunidades locais, sem que isso represente uma erosão da diversidade biológica, que é o que se passa no planeta.” Até 2030, as cinco estações biológicas terão a oportunidade de começar a dar algumas respostas.