William Laurance: “Vamos certamente perder muitas das nossas florestas tropicais”

Os ecossistemas mais importantes a nível ambiental estão em risco, diz biólogo que estuda há décadas as florestas tropicais. Mas quem se envolve na conservação pode ter o impacto de “10.000 pessoas”.

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A floresta tropical da Amazónia é a maior do mundo BRUNO KELLY/Reuters
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Há mais de 40 anos que William Laurance estuda as florestas tropicais húmidas da Terra. Já esteve na Amazónia, no Congo, em Madagáscar e nas florestas da Indonésia. Já se deparou com pumas, viu orangotangos e fugiu de elefantes, e tem a consciência de que muitas experiências que teve oportunidade de viver deixarão de acontecer num futuro próximo, com o fim de parte dessas florestas.

O biólogo, professor da Universidade de James Cook, na Austrália, foi o palestrante escolhido para a conferência Florestas Tropicais num Mundo em Transformação, na Fundação Calouste Gulbenkian, um evento de antecipação da cimeira global Digital with Purpose, que vai decorrer em Lisboa, entre 27 e 29 de Setembro, no Altice Arena, com vários conferencistas dedicados aos temas da biodiversidade, da saúde, da educação e das cidades inteligentes e sustentáveis.

O australiano, que falou por videochamada, foi apresentado pela bióloga Helena Freitas, que elogiou o seu vasto currículo de artigos premiados, livros publicados e vários prémios, entre os quais o Australian Laureate Fellowship, e a sua luta activa pela conservação das florestas tropicais.

Na palestra, William Laurance focou-se num dos temas a que mais se tem dedicado: a construção de estradas nas florestas tropicais. Previsões que já vêm da década passada previam a construção de mais 15 milhões de quilómetros de estradas a nível mundial até 2050. Uma boa parte dessas novas vias será feita em países em desenvolvimento, que albergam as florestas tropicais do mundo. Essa é uma preocupação absoluta para o biólogo. “As estradas são como sementes onde os tumores podem começar a crescer”, disse ao PÚBLICO, numa videochamada a partir da Austrália. O tumor é a desflorestação.

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Susan G Laurance

Qual a importância das florestas tropicais?
Elas são os ecossistemas mais importantes em termos ambientais no planeta: em termos de armazenamento de carbono e de impacto no clima. As florestas tropicais estão a emitir maciçamente calor e humidade, vapor de água que vai para a atmosfera, o que é vital na condução dos nossos ciclos climáticos. Há circulações atmosféricas que ocorrem entre os trópicos e as áreas temperadas, como a Europa e a América do Norte, absolutamente cruciais a nível agrícola, e as chuvas que estão a ser produzidas por estes motores térmicos tropicais são fundamentais no fornecimento de humidade a esses ecossistemas temperados. Se houver uma disrupção numa grande parte da Amazónia, é possível que haja uma redução de chuvas na América do Norte.

As florestas tropicais são o património mais rico do planeta. É preciso procurar grupos como os pinguins para encontrar uma diversidade maior nos pólos do que nos trópicos. Quer sejam os fungos, as aves, o que se quiser, tendencialmente há muitas espécies nos trópicos.

Compara a desflorestação com um cancro que cresce e se espalha e está ligado à construção das estradas. Porquê?
As estradas são como sementes onde os tumores podem começar a crescer. Se uma estrada corta uma floresta prístina, o que tendencialmente ocorre é muito parecido com um cancro, já que vão surgir pontos activos de desflorestação, como tumores que crescem ao longo da estrada. Costumam também surgir novas estradas [a partir da principal] e o cancro vai-se espalhando. Falamos muito de se evitar o primeiro corte. Se há mil hectares de floresta intacta, não queremos pôr uma estrada no meio da floresta, se isso for possível. É muito mais provável manterem-se os valores biológicos lá, se a estrada não for construída.

Na palestra falou sobre estradas-fantasma. O que são e porque é importante estudá-las?
As estradas-fantasma são estradas ilegais, ou não oficiais. Não foram sancionadas, legalizadas, licenciadas, e estão a ser construídas de muitas formas diferentes. É possível alguém ter uma escavadora que constrói as estradas. Além disso, elas proliferam muito depressa. O menor rácio que identificámos num estudo é de dois e meio a três vezes mais estradas ilegais do que estradas legais; num dos estudos que fizemos, esse rácio era de 13. Estas estradas-fantasma são invisíveis, não estão estudadas, nem controladas ou reguladas, e estão a proliferar a uma velocidade tremenda.

É importante parar a construção de novas estradas?
É realmente importante. Muitas destas estradas-fantasma proliferam a partir de infra-estruturas legais. Por isso, quando se constrói uma estrada de uma forma legal, em alguns sítios pode ocorrer uma data de estradas adicionais, que provocam mais destruição de floresta. É necessário estar ciente disso.

É necessário haver mais investigação sobre estradas-fantasma, e temos de as monitorizar mais. Uma das coisas que temos defendido é um sistema de inteligência artificial que possa monitorizar estradas-fantasma [a partir de imagens de satélite], porque já mostrámos com os nossos voluntários que são necessárias 700 horas de trabalho para monitorizar 1,4 milhões de hectares. Para a superfície terrestre de todo o planeta, seriam necessárias 640.000 horas, o equivalente a 73 anos de vida de uma pessoa. E precisamos de ter estes mapas actualizados uma vez a cada seis meses.

Porque é que é necessária uma actualização tão frequente?
Porque as estradas espalham-se muito rapidamente. Há literalmente sítios onde um dia vamos lá e não há nenhuma estrada, e volta-se no dia seguinte e alguém construiu estradas.

Como equilibrar o desenvolvimento de infra-estruturas de países com a protecção da biodiversidade?
O que eu posso dizer é que muitos países têm um interesse financeiro e económico em controlar o que se passa dentro das suas fronteiras. Há uma tendência tão grande nos trópicos para as actividades ilegais: exploração madeireira ilegal, mineração ilegal, caça ilegal, comércio ilegal de animais selvagens. Todo o tipo de recursos naturais estão a ser retirados das florestas tropicais, estão a ser explorados, e muitas vezes não são regulados de forma nenhuma. As ameaças que estamos a enfrentar nas florestas tropicais húmidas são muito, muito diversas.

Há um risco de as florestas tropicais desaparecem algures no futuro?
Não há dúvida de que as florestas tropicais vão ser realmente esmagadas em alguns lugares. As florestas de planície da região do Sudesteasiático estão realmente a ser destruídas e também muito das florestas de montanha. Se formos à Amazónia, há todo o tipo de coisas a acontecerem lá. As florestas de Madagáscar foram dizimadas. Vamos certamente perder muitas das nossas florestas, e as que se mantiverem vão estar degradadas a vários níveis. Fica em aberto quanto da biodiversidade poderá sobreviver. Há um desafio à nossa frente, porque é nos territórios destas florestas que se vê muito do crescimento da população e muito do desenvolvimento económico.

Por isso, o que estamos a tentar fazer é olhar para estes projectos [de novas infra-estruturas] e tentar ser objectivos e dizer quais são os custos e os benefícios, e quais destes projectos são bons e deverão seguir em frente, e quais são más ideias, não só a nível ambiental, mas também a nível económico e social.

Um dos maiores problemas com a Amazónia é o risco de se tornar uma savana. Isso preocupa-o?
Trabalhei de perto com Thomas Lovejoy (1941-2021) que fez muito trabalho na Amazónia. Ele era uma das pessoas a falar sobre o ponto de não-retorno da Amazónia. Todas as pessoas que são abertas sobre isto irão admitir que há muita ciência aqui que não compreendemos completamente. Tentar modelar e prever os efeitos das alterações climáticas numa região enorme como aquela é um desafio absoluto. Houve um estudo que olhou para a vegetação e para outras medições do stress e mostrou que há um sinal crescente de stress forçado na Amazónia. Eles mostraram que três quartos da floresta da Amazónia estavam a perder resiliência, como consequência das alterações climáticas e de alterações do uso de solo. O mundo tem um interesse enorme em tentar manter a Amazónia e tudo o que ela faz, e penso que seria realmente uma tragédia, se não prestássemos atenção ao que sabemos.

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Um calau numa floresta na Malásia FAZRY ISMAIL/Lusa

As outras florestas tropicais do mundo também correm este risco de transição?
Há uma grande discussão sobre isso. Acho que em África sim. O local onde acho que é mais questionável é na região do Sudeste asiático, porque aí as ilhas estão efectivamente rodeadas por oceanos. As dinâmicas do que acontece com a superfície do oceano, a temperatura do oceano à superfície e com os oceanos à volta destas áreas vão ter provavelmente um grande impacto na precipitação e nos padrões de vento [nas ilhas]. Em locais como a Amazónia e o Congo, as áreas florestais são tão grandes e os oceanos estão tão longe, que a floresta quase se torna o jogador principal em termos de determinar o clima.

O que há de especial em estar numa floresta tropical?
Adoro estar numa floresta onde sei que é possível virar-me e ver um jaguar ou um elefante da floresta. Já tive alguns incidentes. Dei de caras com dois pumas. Tive jaguares a perseguirem-me. Não os vi, mas as suas pegadas e as suas arranhadelas estavam por todo o lado. No Congo, um grupo de elefantes queria realmente matar-me. Mas há qualquer coisa de mágico. Visita-se um destes lugares e é possível ver orangotangos selvagens, ou [as aves] calaus, pode-se ver coisas incríveis que já só existem em poucos lugares do mundo. Sinto-me um privilegiado de ter podido visitar lugares antes de muitos, infelizmente, virem a desaparecer.

Quais são os projectos de construção com que está mais preocupado?
Há tanta coisa a acontecer. Mencionei [na conferência] a iniciativa da China da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), onde estão envolvidos 155 países, com 7000 projectos. Nada disto foi anunciado oficialmente, mas está tudo em vários sites. Há todo um número de auto-estradas enormes e projectos de hidroeléctricas na Amazónia. Não há quase local para onde se olhe e não exista grandes projectos a acontecer.

Olhámos em África para 33 propostas de corredores de desenvolvimento, que são grandes auto-estradas ou ferrovias com muito desenvolvimento associado, e o comprimento total de mais de 53.000 quilómetros. Concluímos que apenas seis dos 33 corredores de desenvolvimento eram uma boa ideia. Isso é o tipo de coisas que realmente gostamos de fazer, sermos capazes de dizer aos governos dos países: “Aquilo é um bom investimento, pensamos que é uma boa ideia, parece sólido. No entanto, estes projectos preocupam-nos e vemos estes problemas neles.” E de modo geral os governos percebem que estamos a tentar ajudá-los quanto a coisas sobre as quais querem saber mais.

Como é que as pessoas que vivem longe das florestas tropicais podem ajudar?
A minha sugestão é que as pessoas se juntem a uma organização não governamental. Há muitos grupos diferentes que estão activos e o ideal é alguém juntar-se a um grupo local que esteja sediado em lugares como o Brasil ou a Indonésia. Há também as grandes organizações não governamentais como o Fundo Mundial da Natureza, a Conservation International, a Sociedade de Conservação da Vida Selvagem. Estes grupos normalmente têm muita actividade em países em desenvolvimento. Quem se junta a um destes grupos vai recebendo informação. Fica-se a saber o que está a acontecer e é possível ajudar em projectos específicos, como salvar uma zona prístina de uma estrada de 800 quilómetros que vai ser construída. Essa é uma boa forma de se adquirir conhecimento e de ficarmos envolvidos na luta.

Uma coisa que digo a muitos dos meus estudantes é que a maioria das pessoas não está activamente envolvida. Por isso, se alguém se torna realmente envolvido, é possível ter-se um impacto equivalente a 10.000 pessoas. Uma pessoa que realmente se importa e que está realmente a actuar, a organizar outras pessoas e a trabalhar muito, pode de facto ter um grande impacto. Há muitas oportunidades para os jovens fazerem algo pela floresta.