Azul
O que é que a Lídia Jorge tem a ver com o Rishi Sunak e o António Guterres?
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A conversa era antiga. Lídia Jorge falava com Patrícia Reis e Paula Cosme Pinto sobre o livro que escreveu sobre e para a sua mãe. Os podcasts têm este lado engraçado de nos dar permissão para ouvir as conversas dos outros. Podemos fazer isso no autocarro, num café na fila de um banco, mas convém disfarçar. Num podcast não. Aquela conversa dos outros é mesmo para ouvirmos.
Ouvi-as falar durante uma hora no podcast Um Género de Conversa, publicado a 6 de Dezembro de 2022. O título chamou-me a atenção: "Quem perdoa facilmente, não tem carácter" e pus-me à escuta. A conversa foi longa e não tinha a ver com o clima, mas fiquei com uma ideia a martelar na cabeça.
Foi quando Lídia Jorge falava das conquistas das mulheres na sociedade e falou no "ponto de pé atrás". Um ponto de costura que leva a agulha à frente, volta atrás para depois fazer uma laçada de novo para a frente, explicou. "Acho que as sociedades avançam como essa antiquíssima costura, uma costura de reforço. Para reforçar, a agulha vai um pouco à frente, volta atrás e depois avança mais para diante", disse Lídia Jorge.
Como já disse, a conversa não tinha nada a ver com o clima ou com a crise climática. Mas falava-se nos avanços lentos da sociedade e isso tem tudo a ver com o clima e com a semana que passou. Tivemos os donos do mundo reunidos em Nova Iorque e arrisco dizer que pouco ou nada avançou. Abstenho-me de comentar a política internacional, o progresso lento nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável e o delicado tema de uma guerra que parece não ter fim. Deixo isso para quem sabe dessas malhas, como a nossa ímpar Teresa de Sousa que nos explica o que realmente significa ouvir o secretário-geral da ONU dizer que não tem poder.
Falo do clima. E se o levar para a conversa da costura, insisto, pouco ou nada se avançou. Pelo contrário, houve um "ponto de pé-atrás". E, infelizmente sem a laçada para a frente que devia garantir o avanço e um reforço. O primeiro-ministro do Reino Unido não só deu um perigoso ponto de pé atrás defeituoso na sua ambição climática como – e desculpem-me o exagero da metáfora – deixou cair malhas que seguravam o pano, criando um buraco que vai ser muito difícil de disfarçar quando olharmos para o progresso climático no continente europeu. O Reino Unido destoa cada vez mais da Europa. Agora, na ambição climática.
As metas foram adiadas, as cedências são óbvias e para qualquer pessoa minimamente informada este é um passo arriscado. Para proteger as famílias de hoje (esse foi o argumento de Rishi Sunak) o Reino Unido pode estar a atirar as famílias de amanhã para um abismo.
O momento não podia ser pior. Sunak anuncia a sua inversão de marcha na ambição climática em plena cimeira das Nações Unidas. Depois de o secretário-geral António Guterres ter organizado uma cimeira climática de dois dias com o corajoso detalhe de apenas convidar os países que têm de facto um plano, que mostram acção climática.
O momento não podia ser pior, estamos a viver a crise climática em tempo real. A dois dias do fim de Verão, não chegam os dedos de duas mãos para contar as catástrofes que vimos eclodir em vários países nos últimos meses, de ondas de calor a incêndios ou inundações que roubaram vidas e engoliram a terras, casas, parques, estradas.
O momento não podia ser pior. Sunak recua quando a Terra grita por socorro. E juro que esta não é mais uma criativa metáfora de António Guterres. Perito em frases mediáticas que querem transmitir a gravidade do tempo que vivemos, o secretário-geral preferiu dizer algo relacionado com o facto de termos agora as portas para o inferno abertas. Também serve, mas não dá, de facto, grande vontade de avançar nessa direcção. Terá sido por isso que Sunak fez inversão de marcha? Não, claro que não. A pergunta que faço nem sequer tem graça. Mas é verdade que as metáforas de António Guterres não movem governos e isso parece estar bem provado nos últimos anos. Como ele próprio admite, resta-lhe o poder das palavras. E a verdade é que nada nem ninguém o cala. Ainda bem.
O momento não podia ser pior. Sunak escolheu um ponto de pé-atrás defeituoso que pode colocar em risco muita coisa. Deixa um buraco na malha da Europa quando o que precisávamos era das tais laçadas que seguem para a frente e reforçam o avanço de um plano de transição.
Precisamos avançar neste tricô sem gente poderosa a atrapalhar e a dar pontos sem nó. A ideia é reforçar, Sunak. Fazer mais. Ouça a Lídia Jorge, a agulha pode vir um pouco atrás, mas depois volta para a frente para seguir em diante. É preciso reforçar a ambição. Pode ser com pontos de pé-atrás, mas têm de ser bem-feitos. Aqueles que fazem uma costura de reforço, que tornam a malha mais forte e coesa. Era isso que se pedia agora.
Sunak já está a ser trucidado por críticas. No Reino Unido, Empresas, cientistas e políticos (incluindo alguns do partido do primeiro-ministro Rishi Sunak) juntaram-se numa crítica ao alívio das metas de redução das emissões de CO2 no Reino Unido. Esperamos mais vozes com valentes e merecidas desconsiderações que escarafunchem esta desilusão e denunciem este "acto de fraqueza".
Espero que não o perdoem tão cedo nem facilmente por este passo em falso na inevitável e urgente transição. Afinal, como também disse Lídia Jorge no mesmo podcast lembrando palavras da sua mãe: "Quem perdoa facilmente, não tem carácter". Não sei se o lema vale para tudo, mas tenho a certeza que Sunak não merece perdão fácil.