A Comissão Europeia tem medo dos lobos? Não parece ser caso para isso

Especialistas em vida selvagem criticam iniciativa da União Europeia que pode levar à modificação do estatuto de protecção do lobo. É preciso reduzir as hipóteses de conflito.

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É preciso pôr em prática medidas de prevenção para evitar ataques de lobos ao gado, dizem os especialistas Rafael Marchante/REUTERS
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A Comissão Europeia abriu um processo de consulta, que termina nesta sexta-feira, 22 de Setembro, para avaliar a possibilidade de mudar o estatuto de protecção dos lobos, cedendo aos grupos de pressão de agricultores e caçadores, que se queixam do impacto destes grandes carnívoros sobre o gado. Mas não só a população de lobos na Europa ainda não recuperou o suficiente para aliviar a protecção desta espécie, como a ciência desmente que a caça aos lobos faça diminuir o número de ataques ao gado, dizem um conjunto de especialistas em lobos e organizações ambientalistas europeias.

Foi a própria presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que deu o mote. “A concentração de alcateias em algumas regiões da Europa tornou-se um perigo real para o gado e potencialmente também para os seres humanos”, declarou, no lançamento desta avaliação, no início de Setembro.

O objectivo era recolher informação sobre a população de lobos na Europa para “decidir sobre uma proposta para modificar, onde for apropriado, o estatuto de protecção do lobo na União Europeia, actualizar o quadro legal e introduzir, onde for necessário, mais flexibilidade”. A espécie é protegida ao abrigo da directiva Habitats. A Comissão Europeia dava o prazo de cerca de 20 dias para obter esta informação.

O problema começa logo à partida nas declarações de Von der Leyen. “A não ser que se aja de uma forma muito estúpida, o risco de ataques de lobos a humanos é mais pequeno do que as hipóteses de ganhar a lotaria”, afirmou Joachim Mergeay, professor na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, especialista em conservação da biodiversidade, numa conferência de imprensa online organizada pela WWF UE (Fundo Mundial para a Natureza), Birdlife Europa e o Gabinete Ambiental Europeu.

Políticas iô-iô

Mas não é só isso. As populações de lobos na Europa não recuperam o suficiente para aliviar o seu estatuto de protecção. “Ter um estatuto de conservação favorável não é o limite máximo acima do qual se pode caçar com segurança; é a meta mínima para poder conservar a espécie a longo prazo”, explicou Joachim Mergeay.

Os cientistas baseiam a sua apreciação num relatório sobre o estado da população europeia de lobos, avaliado num relatório de 2022 para Convenção sobre a Vida Selvagem e os Habitats Naturais na Europa. “A avaliação de 2022 mostrou que a maior parte das populações ainda não chegou a um estado favorável. E não houve mudanças significativas desde então, que justifiquem tomar outra decisão, nem os dados disponíveis para que a Comissão tome uma decisão se alteram”, frisou Mergeay.

“Não há nenhuma revisão científica nova, não houve tempo para tal. Está-se a espalhar desinformação, e a desperdiçar dinheiro público”, considerou Barbara Herrero, responsável para a política de natureza na UE na organização Birdlife Europa e Ásia Central, sublinhando o reduzido tempo do prazo dado pela Comissão para receber contributos e tomar uma decisão sobre o estatuto dos lobos.

“Se a Comissão Europeia continuar a basear a sua política em provas científicas, não deverá alterar o estatuto de protecção dos lobos”, sublinhou.

O objectivo da Directiva Habitats é manter populações estáveis das espécies protegidas – e em 2025, há uma avaliação da directiva, que poderia então ser uma oportunidade para pensar sobre a população de lobos europeia, disse Mergeay. Se optarmos por liberalizar a caça ou abate de lobos quando a população não está estabilizada, “arriscamo-nos a ter uma política iô-iô, a mudar várias vezes no prazo de poucos anos”, avisou.

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Instalar cercas electrificadas, e ter cães pastores treinados para afastar os lobos ajuda a proteger o gado Adriano Miranda

Dados e emoções

“A Comissão devia estar a debruçar-se sobre outros temas urgentes, como a luta contra as alterações climáticas, ou tentar evitar as inundações que causam vítimas mortais”, salientou Barbara Herrero, que classificou esta acção da Comissão Europeia como mais um episódio da guerra cultural, entre valores conservadores e progressistas, que se trava em muitos países. E que, com o aproximar das eleições europeias, na Primavera de 2024, se agudiza na luta política.

“A natureza serve de bode escapatório. Já foi assim quando se discutiu a Lei de Restauro da Natureza no Parlamento Europeu, alguns partidos diziam que a agricultura ia acabar na Europa, que ia haver fome, se fosse aprovado”, recordou Herrero. “No debate, havia um lado que apresentava dados palpáveis, outro avançava com medos, emoções”, disse. “Debatia-se ‘o que eu sinto e o que eu acho que deves sentir’”, explicou.

Em torno dos lobos há muitos medos ancestrais e desconhecimento. “Não há provas científicas de que a caça ou abate de lobos reduza o conflito entre homens e lobos por causa do gado. A não ser que se parta para a erradicação total, mas isso não está de acordo com a política europeia”, afirmou Joachim Mergeay.

Coexistência

A chave da relação entre homens e lobos é a coexistência. “É preciso garantir que são postas em prática medidas de prevenção para afastar os lobos, e de mitigação” para os criadores, se houver ataques ao gado, sublinhou Cristian-Remus Papp, especialista em gestão da vida selvagem da WWF da Roménia.

Há que reduzir as hipóteses de conflito. Evitar que os lobos ataquem o gado pode passar pelo uso de inteligência artificial para elaborar mapas de risco de ataques, por exemplo. Ou, numa abordagem mais tradicional, por instalar cercas electrificadas, e ter cães pastores devidamente treinados para afastar os grandes carnívoros, sublinhou Papp, mostrando alguns exemplos do trabalho que se faz nas montanhas dos Cárpatos.

Há resistência dos criadores a adoptar estas medidas de protecção? “Todas as mudanças enfrentam resistência. Os criadores ficam relutantes no início, mas quando vêem os benefícios, aceitam usar as medidas preventivas. Mas isto exige algum trabalho extra, como verificar o estado das cercas regularmente, garantir veterinários para os cães, por exemplo”, adiantou Cristian-Remus Papp

“Pode acontecer que um lobo ultrapasse a cerca eléctrica”, disse Mergeay, quando confrontado com um caso recente, ocorrido na Holanda, em que um lobo atacou um criador. “Mas o lobo levou um choque, estava desorientado, e o criador fechou-lhe a saída, impedindo-lhe a fuga. Não se espere que ao atacar um lobo não tenha uma resposta”, sublinhou.

“São grandes predadores, com grandes dentes, e ninguém deve aproximar-se. Isso vale para os caçadores, criadores de gado e também para os amantes da natureza”, avisou.