Do Tratado do Alto Mar à vontade política de enfrentar as crises ambientais

Com quase duas décadas de negociação e um trabalho “hercúleo”, este pode ser um acordo revolucionário para conservar e utilizar de forma sustentável a biodiversidade marinha em águas internacionais.

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Adotado a 19 de junho de 2023, o Tratado do Alto Mar começa a ser formalmente ratificado hoje, 20 de setembro, durante a Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque, num primeiro passo para a vinculação de um documento que só entrará em vigor depois de ser ratificado por 60 países.

Com quase duas décadas de negociação e um trabalho “hercúleo” para a definição do texto final, este pode ser um acordo revolucionário para conservar e utilizar de forma sustentável a biodiversidade marinha em áreas para lá da jurisdição nacional (ou seja, águas internacionais), reparando os danos causados por demasiadas dezenas de anos de más práticas e de políticas avulsas, numa verdadeira manta de retalhos de organismos de gestão. Afinal, o alto mar suporta importantes pescarias, fornece habitats para centenas de milhares de espécies, garante a subsistência de milhões de pessoas e é fundamental na mitigação das alterações climáticas: nunca é demais lembrar que 23% das emissões de carbono produzidas pela atividades relacionadas humanas foram absorvidas pelo oceano nos últimos dez anos.

É já um dado adquirido que estamos a correr atrás do prejuízo. Numa altura em que estamos em contagem decrescente para o “deadline 2030” do cumprimento das metas do Quadro Global de Biodiversidade, todas e todos – chefes de Estado e de Governo, ministros, organizações da sociedade civil, representantes de comunidades indígenas e locais, empresas e cidadãos – somos chamados a nível global para contribuir individual e coletivamente com ações nacionais e internacionais para deter e reverter a perda de biodiversidade, necessárias para alcançar um mundo onde ainda seja possível vivermos. O foco estará na mobilização de recursos de todas as fontes, na reorientação de incentivos prejudiciais atuais – como subsídios atribuídos a atividades danosas para a natureza – e na conservação e proteção de 30% das terras e 30% dos oceanos de todo o planeta até 2030. Sem um impulso urgente e impactante quer no financiamento, quer na implementação no terreno, será impossível enfrentar as crises climática e de biodiversidade que nos assolam.

O Tratado do Alto Mar pode e deve ser uma grande parte desse impulso – e Portugal deve ser parte ativa na sua implementação. Com uma ratificação expectável por parte do nosso país, há que assumir de vez a conservação e restauro da natureza como uma das prioridades de ação governamental, aliando a proteção da natureza com a proteção, a saúde e o bem-estar das pessoas. E esta é uma das peças que faltava neste puzzle: ao estabelecer um quadro legal internacional para a conservação da vida marinha e a contenção de atividades nocivas, com avaliações de impacte ambiental das várias atividades desenvolvidas em águas internacionais, o tratado oferece-nos uma oportunidade sem precedentes, já que garante um mecanismo internacional para a preservação de ecossistemas marinhos valiosos e a proteção de espécies-bandeira.

Mais: a aprovação do Tratado do Alto Mar, que permitirá a designação de Áreas Marinhas Protegidas em águas internacionais, traz à tona a urgência de avançarmos com a regulamentação da Rede Nacional de Áreas Marinhas Protegidas (AMP), que tarda em ver a luz do dia. Sabemos, por vários estudos e projetos, que a maioria das AMP em Portugal é apenas moderadamente protegida, e em várias delas não existe qualquer proteção, monitorização, fiscalização ou gestão adequadas, na maior parte dos casos por falta de investimento e recursos humanos. Muitas têm sido as intenções proclamatórias para proteger e conservar 30% do oceano até 2030, ou até mesmo antes, mas insistimos: não basta promulgar decretos criando áreas protegidas e chegar aos 30% se estas áreas não forem realmente as mais relevantes em termos de biodiversidade a ser preservada, se não houver conectividade no seio do sistema de áreas protegidas, se não houver envolvimento e participação adequadas dos stakeholders, ou se os planos de gestão não forem bem elaborados e implementados.

Fica então o apelo para que Portugal possa honrar o compromisso: ratificar este acordo, mas também assegurar que Portugal atinja esta meta a nível nacional. A sete anos de 2030 e com mais de 20% de verdadeira proteção por garantir, as contas são, infelizmente, fáceis de fazer. Há que somar coragem, ação e investimento aos compromissos políticos desta legislatura, caso contrário o resultado poderá ficar bem aquém do desejado.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico