Nesta obra, até o plástico se pode ouvir
Extinction Events and Dawn Chorus, que chega à Casa da Música em estreia nacional, já se fez ouvir do México a Helsínquia. Liza Lim diz que é um ‘teatro instrumental’ com sons invulgares.
“Sinto-me privilegiada pelo facto de esta obra ser tocada tantas vezes e em pontos geográficos tão dispersos, do México a Helsínquia, do Porto, agora, a Melbourne. É fantástico que, de algum modo, tenha activado uma certa resposta numa variedade de contextos culturais. Creio que parte disso vem, naturalmente, do tema da crise ecológica, da extinção de espécies e dos temas do antropoceno com que temos vindo a ser confrontados, de forma cada vez mais premente e óbvia. Somos, cada vez mais, afectados por pequenas catástrofes ecológicas – não é algo que aconteça lá longe. E os artistas e as instituições querem responder a isto”, diz ao PÚBLICO via Zoom a compositora australiana Liza Lim.
Disponível em CD pela Kairos desde 2020, com Peter Rundel à frente do Klangforum Wien, Extinction Events and Dawn Chorus tem uma duração aproximada de 40 minutos e divide-se em cinco partes, escritas para um agrupamento de 12 músicos: 1. Anthropogenic debris, 2. Retrograde Inversion, 3. Autocorrect, 4. Transmission e 5. Dawn Chorus.
“Há algo particular nesta obra em concreto, na medida em que conjuga ideias musicais e conceitos do ‘mundo real’, na forma como se dirige ao público, num ‘teatro instrumental’ com sons invulgares que potenciam a imaginação de diferentes mundos, diferentes formas de vida, diferentes possibilidades e situações…" A compositora aponta dois momentos-chave: "Um é a chegada ao palco de uma gigante folha plástica, que é trazida pelo violinista – uma espécie de disrupção, uma afirmação: um pedaço de lixo vem para palco e começa a participar na música. Ouve-se a voz deste plástico, a sua sonoridade que contagia e entra em diálogo com os outros instrumentos. O outro elemento é um diálogo entre violino e percussão (em 4. Transmission): o violinista tenta ensinar o percussionista (que está a tocar caixa de rufo) a tocar violino. É quase uma cena de fantoches muito peculiar, que diz algo sobre comunicação e ruptura.”
A maior parte dos músicos usa ainda ‘instrumentos especiais’: além do plástico, tocam waldteufels e kazoos, tentando responder à indicação de “improvisar uma melodia em uníssono – uma indicação paradoxal”. Isto acontece no final da obra, quando se regressa ao ‘além do humano’, “à ideia de que há mais registos de percepção, outras formas de estar no mundo que pertencem a outros que não os humanos. A obra volta-se para o mundo, não só como crítica aos humanos, mas sugerindo que, prestando atenção e dando um passo para além do contexto em que os humanos são sempre o centro, poderemos estar num mundo melhor.”
Lim diz-se surpreendida pelo sucesso da obra, que tem sido “programada várias vezes com repertório mais tradicional. Na Alemanha, foi tocada no mesmo concerto que A Criação, de Haydn, publicitando-se o evento como “Criação e extinção”. “As pessoas ficam curiosas e interessadas simplesmente por causa do título – creio que programar algo que aponta para o início, no repertório mais antigo, e depois a minha obra, a apontar para a extinção, é uma boa estratégia.”
O concerto desta terça-feira, na Casa da Música, é apresentado com o título “Estações artificiais”, aludindo à obra para violino e agrupamento de Salvatore Sciarrino (1947), que completa a primeira parte do concerto, iniciado com La Création du Monde (1922-23), de Darius Milhaud (1892-1974).
Liza Lim lamenta bastante não estar presente, mas deixa antever algumas visitas ao Porto num futuro não muito distante.
Próximas estreias
Além de ensinar no Conservatório de Música de Sydney, onde é professora de composição e inaugurou a cátedra Sculthorpe de música australiana, Liza Lim vê-se a braços com diversas encomendas. A próxima estreia dá-se já em Novembro, no Festival de Lucerna, na Suíça, e promete alguma novidade, já que não é hábito trabalhar com electrónica. Multispecies Knots of Ethical Time [2023], cujo título vem do artigo homónimo da antropóloga Deborah Bird Rose, junta a violinista Winnie Huang (em performance gestual com um controlador midi) a um grupo da Lucerne Festival Contemporary Orchestra, envolvendo ainda um vídeo da autoria de Morena Barra. Winnie Huang traduz o filme sobre o rio – que é, aliás, o grande protagonista – em som. Algo nos deixa adivinhar o som da água em movimento captado não muito longe de Lucerna.