Não esperava que poucas horas de uma noite desgraçada viessem a bastar para que o cadáver a quem me afeiçoara debandasse para sempre. Até ele se assustou com a criatura magra e ausente que encontrei desmaiada no chão, estorvando em oblíquo o passeio e a estrada. Tinha ido beber um copo ao Cais do Sodré, precisava desesperadamente de me contrariar, o Pico começava a parecer-me um lugar bom para regressar. Ainda ouvia as suas gargalhadas, enquanto procurava um bar que não fosse para meninos. O Pico, estás mesmo a falar do Pico? Da tua vida na ilha?
Entrava a passos largos numa rua próxima de um albergue para pessoas sem-abrigo, para os lados do Cais do Gás, quando a vi. Sem entusiasmo, debrucei-me sobre o corpo estendido e abanei-a, quase de imediato recuperou a consciência. Arrotou um olhar hostil, virou a cara e começou a apertar-me a mão, com força. Fiquei sem saber o que fazer, preso na mão cordão corrente, desagradado com a situação. Mantinha os olhos fechados e parecia refugiada na própria respiração, menos desprotegida do que eu esperava, num mantra em que não me percebi logo incluído. Reparei no vestido amarelo-claro que parecia ter sobrevivido ao tempo e seria banal nos anos 50, cintura marcada por um cinto que tinha subido um pouco, pregas que garantiam o rodado e evocavam pulinhos de satisfação. As pernas compridas faziam dela um polvo estirado sobre a calçada.
Inesperadamente, sentou-se e olhou em frente. Dirigia-se a mim, salvador enferrujado.
— Podes esquecer a Carolina do Norte? Não é no cemitério que se encontram mortos. Chamo-me Augusta.
Não me larga a mão e sinto medo, até um cadáver sagaz é melhor companhia. Mas a pele dela brilha e as minhas reticências recuam. Vendo melhor, o vestido amarelo é de sarja, talvez que tenha vindo de uma operária que se ajeita com a costura e copia os modelos de actrizes famosas, talvez que Augusta se maravilhe com o Pico.
Já de pé, a mulher endireita cuidadosamente o vestido, e logo depois, lembrando-se, gira o anel que usa no anelar direito, em que não reparei antes. Parece novamente transtornada. Tem a minha altura e diz-me, perto do ouvido:
— A que horas muda a maré?
Encolhi os ombros. Restam-me poucas alternativas. Vasculhou-me, pendurou-se nos seus piores dias e reconheceu-me dali. Veio-me à ideia que terá atravessado décadas com o mesmo vestido, sem que a pele perdesse o brilho, saltando de rocha a rocha, resistindo ao desprezo e à troça.
— E agora fugimos para onde?, oiço-a dizer, para si mesma. Puxo-a pelo cotovelo, evitando tocar-lhe na mão, talvez que a possa levar para casa. Augusta não parece estimar a protecção masculina:
— Tenho uma coisa para te contar, não quero flores nem presentes. E não me podes obrigar a dormir. Sabes como se faz com as plantas? Sacodes as folhas mortas à volta, com os dedos apertas o que amarelou e soltas o que está seco. E amanhã é quarta, levo-te a comer a dobrada do Sr. Joaquim, talvez fosse bom tomares banho.
A AUTORA: Joana Leitão de Barros
Nasceu numa casa onde já existiam dois cães, a Queda, uma rafeira malhada, e a Sissi, uma basset preta. Os pais estreantes, um médico e uma enfermeira, fizeram de si um bebé bonito e dependente da mãe, como ela queria. Estava já ela baptizada de rainha dos disparates, quando, quase adolescente, os convenceu a oferecerem-lhe a Bábá, uma Fox Terrier incansável. Perceberam que os passeios não lhe bastavam e que era um crime mantê-la fechada num apartamento. Começaram a soltá-la à noite. Morreu atropelada, com um rato na boca. Foi o seu primeiro desgosto de amor, grave e acompanhado de culpa; em sinal de luto não ouviu música durante semanas.
Veio depois o Óscar, vagamente pastor-alemão, no período em que estudava Filosofia na Universidade Católica. Os intervalos maiores passava-os com os rapazes desenvoltos de Gestão e Economia, mas os seus colegas eram seminaristas. O Óscar veio para os seus braços por acaso, foi atropelado numa instituição que recebia jovens em risco, em que era torturado por rapazes que tinham nele uma distracção da clausura. Tratou dele durante a recuperação e ele amou-a à loucura, confuso e dado a delírios. Mordia quem entrasse no seu perímetro, como se não houvesse amanhã. Depois foi mãe e descurou-o, não há como dizer isto de outra forma. Morreu tomado por uma sépsis, na quinta que uma amiga tinha transformado em albergue canino. Contou com o seu pai, como sempre, um psiquiatra que era um grande veterinário, como insistia essa amiga.
Seguiu-se só e apenas a Rasta, o amor da sua vida. Uma terranova, um gigante de inteligência, coração e perspicácia. Salvou-a durante 15 anos. Desse amor de quarentona não se quer curar, recusa o Tinder dos cães. A Rasta cansou-se de a ver acompanhar os temas da comunicação e do marketing para a Economia do Expresso. E até ela sabia de trás para a frente o missal das agências de comunicação, a que jurara não voltar.
No jornalismo tinha passado por meia dúzia de redacções da imprensa económica e generalista. Não sabe que raça é a sua, mas guarda muitos e preciosos lugares de quem começava a falar com o gravador desligado.
No dia em que morrer, sem ter escrito uma mini-bio decente, lá estarão a acolhê-la no céu dos cães, onde tem séria esperança de entrar.