As ondas de calor marinhas são mais intensas onde há mais vida

Artigo publicado na Nature com cientistas portugueses conclui que as ondas de calor marinhas são mais intensas e duradouras entre os 50 e 250 metros, onde se encontra maior biodiversidade.

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As ondas de calor marinhas já foram associadas a morte e branqueamento de recifes de coral Ove Hoegh-Guldberg/Universidade de Queensland/REUTERS
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Em 2023, a temperatura dos oceanos esteve mais alta desde que há registos e houve várias ondas de calor marinhas – períodos de temperaturas superiores à média, com duração de pelo menos cinco dias. Quer no Mediterrâneo quer no Atlântico Norte, as águas aqueceram. O que uma equipa internacional com três cientistas de instituições portuguesas descobriu é que as ondas de calor se fazem sentir mais e durante mais tempo a uma profundidade entre 50 e 250 metros, e não à superfície. E isso é mau, porque é nesta zona que se concentra a maior biodiversidade.

“Foi inesperado perceber que a intensidade e duração das ondas de calor marinhas é superior em profundidade, principalmente entre os 50 e os 250 metros”, admite ao PÚBLICO Jorge Assis, do Centro de Ciências Marinhas da Universidade do Algarve (CCMAR) e da Universidade do Norte, na Noruega, que coordenou o estudo publicado nesta segunda-feira na revista Nature Climate Change.

Espera-se que, com as alterações climáticas, a frequência das ondas de calor marinhas continue a aumentar, tal como se observou em terra, onde as ondas de calor contribuíram para fazer deste Verão o mais quente desde que há registos a nível global. Os oceanos da Terra absorvem cerca de 90% do calor em excesso relacionado com o aquecimento global. Nesta investigação, que analisou dados entre 1993 e 2019 a profundidades até 2000 metros, os cientistas relacionaram as ondas de calor com a biodiversidade dos oceanos, antecipando o tipo de impacto que poderiam ter sobre as espécies de animais, plantas e microrganismos.

As conclusões são preocupantes: “Grande parte dos grupos de biodiversidade que conhecemos está compreendida até essas profundidades [50-250 metros]”, adianta Jorge Assis.

“Com a excepção das espécies que são produtoras primárias e dependem da luz, todos os outros grupos se distribuem a essas profundidades. Por exemplo, corais, esponjas, peixes, invertebrados marinhos como os crustáceos, moluscos como cefalópodes”, completa.

Calor debaixo do mar

A equipa, que inclui Miguel B. Araújo, do Museu de Ciências Naturais de Madrid e da Universidade de Évora, e tem como primeiro autor a grega Eliza Fragkopoulou, investigadora no Centro de Ciências do Mar e estudante de doutoramento na Universidade do Algarve, concluiu que 14% do oceano pode ser classificado como uma zona em que as espécies que lá vivem têm uma alta exposição aos efeitos das ondas de calor marinhas. A média oscila entre 11% à superfície e aos 250 metros de profundidade, e 16% a 75 e 100 metros, escrevem no artigo da Nature Climate Change.

O estudo analisou profundidades até 2000 metros. Um alvo que é novo, pois as previsões e os impactos destes eventos têm-se centrado na superfície do mar, sublinha um comunicado de imprensa da Universidade do Algarve. No entanto, observações localizadas sugeriam que as ondas de calor marinhas poderiam ocorrer abaixo da superfície e persistir durante anos.

Contra as nossas expectativas, descobrimos que as ondas de calor marinhas são mais intensas abaixo da superfície e que a sua duração pode duplicar, quando comparadas com a superfície”, observou Eliza Fragkopoulou, citada no comunicado.

A média da anomalia de temperatura máxima de cada onda de calor é de mais de 1,3 graus Celsius nos primeiros 200 metros de profundidade, sendo que a zona de maior intensidade se situa a 100 metros, onde a média da anomalia é de 1,6 graus, referem os autores do artigo. Mesmo a 200 metros, a intensidade é ainda igual à da superfície – mais 1,3 graus. Abaixo disso, a intensidade das ondas de calor vai diminuindo.

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As ondas de calor podem ter um forte impacto nas pescas, devido à migração de espécies de peixes para águas mais frias Babu/REUTERS

E porque é que as ondas de calor se tornam mais intensas em profundidade? “Os mecanismos estão relacionados com as alterações climáticas globais, mas não são ainda de todo conhecidos”, responde Jorge Assis. São avançadas algumas explicações: “O afundar de águas superficiais ou o deslocamento de correntes em profundidade são alguns dos mecanismos propostos. Essas águas quentes ficam ‘presas’ devido à dinâmica do mar profundo, fazendo com que [as ondas de calor] sejam mais duradouras do que na superfície”, completa o investigador.

Foram identificadas regiões do mundo de maior risco para a biodiversidade marinha por causa das ondas de calor, que incluem partes dos oceanos Índico e Atlântico Norte, porque a intensidade das ondas de calor coincide com áreas em que se prevê uma elevada sensibilidade das espécies ao stress térmico. Por exemplo, golfo do México, golfo de Áden (entre a Somália e o Iémen) e mar da Tasman (no Pacífico, entre a Austrália e a Nova Zelândia).

Portugal não é um hotspot

O estudo é feito sob uma perspectiva global, não teve um foco nas águas portuguesas. “Não fizemos uma análise regional que explorasse os padrões de Portugal. O que podemos dizer é que a região onde Portugal se insere não é um hotspot de ondas de calor intensas e duradouras em profundidade”, disse ao PÚBLICO Jorge Assis.

As ondas de calor marinhas podem ter impactos muito concretos nos ecossistemas. “Os organismos marinhos têm uma tolerância de temperatura específica na qual podem sobreviver e reproduzir-se. As ondas de calor marinhas já foram associadas a morte e branqueamento de recifes de coral, migração de espécies para águas mais frias e perturbações nos ecossistemas marinhos”, explica Jorge Assis. Com o impacto em ecossistemas costeiros, como estuários, recifes de coral, ou florestas de macroalgas, de ervas marinhas ou de mangais, “podem afectar as espécies que dependem desses ambientes, seja como refúgio de predadores, regiões de reprodução ou alimentação”.

As pescas podem sofrer. “A migração de espécies de peixes para águas mais frias, evitando o aquecimento nas regiões onde são nativos, pode levar à deslocação das comunidades de pescadores e exigir a adaptação para novas áreas de pesca”, exemplifica Jorge Assis.

“Espera-se que os eventos extremos de temperatura redistribuam as espécies marinhas, levando-as da superfície para o oceano profundo”, adianta Miguel Bastos Araújo, citado no comunicado da Universidade do Algarve.

A redistribuição das espécies no oceano pode ainda ser afectada por outros fenómenos. “Apesar da diminuição de intensidade das ondas de calor marinhas abaixo dos 500 metros, esta profundidade coincide com zonas de oxigénio mínimo em vastas regiões do oceano”, exemplificam os cientistas. Mas é necessário ter provas empíricas disso, salientam.

A equipa lança um apelo a que haja mais investigação sobre o mar profundo, para avaliar a resposta destes ecossistemas ao aquecimento do planeta e às ondas de calor marinhas. “Podem estar a passar-se coisas que não são notadas”, frisam. “O essencial é fomentar mecanismos de financiamento para as ciências marinhas, e com linhas específicas para o mar profundo, do qual se sabe muito pouco”, alerta Jorge Assis.