Augusta?
É essa rua já aí à frente, a seguir àquele grande arco, respondeu-me o vendedor de castanhas assadas.
Agradeci e lembrei-me de ter aprendido na escola, que toda aquela parte baixa de Lisboa tinha sido reconstruída, a seguir ao terramoto de 1755, pelo conhecido Marquês de Pombal, que quando embaixador de Portugal junto do Sacro Império Romano-Germânico, se tinha casado com uma Daun, familiar do imperador que por inerência tinha o título de Augusto e daí chamar àquela rua de Augusta.
Eu tinha chegado de manhã num ferry-boat vindo de Charlotte, na Carolina do Norte, onde tinha ido ao enterro de um velho amigo do tempo da Guerra do Ultramar, que para lá tinha ido trabalhar muitos anos antes.
Tinha sido piloto da FA e como todos os pilotos usava um nome de código. Um de quem também tinha sido muito amigo era o Alzira Zita Zulmira Olívia Palito, mas o dele era bem mais curto. Como tinha um grande nariz, era o Picapau.
Nasci na ilha do Pico e sempre fui pescador. Quase não estudei. O Picapau era da ilha Terceira e gabava-se de ser descendente dos defensores da ilha quando os espanhóis foram corridos na batalha da Salga, perante a investida dos touros bravos. Gabava-se ainda de ser descendente de um Matias Dias, que tinha tirado o coração a um castelhano morto, comido e atirado uns restos pela praia.
Ora, diz a lenda que esses restos de um coração ainda por lá andam a vaguear nas noites de Lua cheia, tendo a forma de cadáver ambulante, que por onde passa deixa marcas na areia, pegadas que parecem mais ser das patas das aves, gravando na areia grafos, não os da teoria dos grafos, mas como letras que deixam mensagens escritas na areia e que ninguém interpretou ainda.
Um dia, um dos pesquisadores destas coisas estranhas, ao fixar detidamente esses grafos, começou a tremer, quase como numa crise comicial, gritando apavorado que um cadáver humano, pouco mais que esqueleto, o abraçava a rir a bandeiras despregadas, enquanto o povo achava que que ele não passava de um vulgar biruta. Assim o levaram, sempre a rir, para o hospital.
Fui subindo a Rua Augusta, pois tinha um encontro marcado com um genealogista açoriano. Conversámos encostados a uma das colunas do Teatro D. Maria, onde tinham sido os Estaus da Inquisição.
No dia seguinte telefonou-me a dizer ter encontrado um documento a dizer que a família que eu procurava se tinha extinguido, e que apenas restava a lenda de um cadáver que em certas noites de Lua cheia aparecia a vaguear, como um bêbedo desengonçado, nas areias da Praia da Vitória.
Tive de me conformar de que é bem verdade que quem espera pelos sapatos de um morto, anda toda a vida descalço.
E passei a ter por companhia, como uma sombra que nunca mais me largou, um cadáver frio e hirto que me dizia amiúde estar sempre atento às histórias do mundo, pois achava-lhes sempre imensa graça. E ria, ria muito.
No Cais das Colunas apanhei outro ferry-boat para Charlotte, cheio de curiosidade de ir logo ao cemitério ver se o Picapau já se teria libertado da cova onde o tinham sepultado.
Mas nunca consegui encontrar o cemitério, por mais perguntas que tenha feito aos mais variados moradores de Charlotte.
O AUTOR: José Manuel Arrobas
Escrever sobre si, o que fez e o que deixou de fazer é quase um problema aritmético. Teria de somar, dividir, multiplicar ou somar? Andou sempre à procura de ajudas, desde uma, a primeira se bem se lembra, para lhe cortarem o cordão umbilical, que sempre achou que era a semente a grelar, mas depois pensou ser apenas um fio condutor dos seus sonhos a começar. Toda a vida tem precisado de pedir ajuda às bibliotecas por onde tem andado, a viajar por elas, e a viajar por dentro dos livros. Às vezes pensa que é ele quem está a escrever estas linhas, mas confessa que não tem certeza nenhuma. Nunca tem (por princípio) certezas e, por isso, gosta sempre de reler o Princípio da Incerteza, que um amigo alemão, o Werner Heisenberg, escreveu quando andaram juntos na escola em Paço D’Arcos. Mas, no entanto, não deixa de se questionar — o que não o inquieta minimamente. Já lhe tem acontecido estar a ler um livro e encontrar por acaso — ou será por necessidade? — outras pessoas a ler o mesmo título, só que noutras línguas, algumas até já mortas, como em hitita ou em grez. E fica espantado, ou não tivesse sido amigo de Rumi e estivesse quase pronto a vender tudo e a comprar espanto. Quando se vê ao espelho costuma ficar muito admirado, porque encontra sempre alguém parecidíssimo consigo, ou mesmo alguém de quem já não se lembrava. Estranho, a sua vida tem sido muito estranha! Hoje está muito mais velho, desorganiza-me com facilidade e até há quem diga que sofre da síndrome de Cotard, porque a verdade é que se sente a pouco e pouco a perder os seus órgãos, e chega a sentir-se morto enquanto escreve.