Augusta não poupara esforços para descobrir quem tinha manchado de forma tão dramática a história da sua família, assim como a de Charlotte. Mas quanto mais perto parecia conseguir desvendar o segredo mais este lhe escapava. Juntamente com Charlote, tinham acabado de visitar na cadeia o Picapau, um criminoso a cumprir 15 anos de prisão, a mais próxima testemunha viva daquilo que de mais cinzento a história da família de ambas escondia.
O Picapau nada lhes adiantou, ficando elas apenas com as suas últimas palavras, antes de ele acabar repentinamente com a visita: “Sabem por que razão as pinhas estalam com o calor?” Dois dias depois souberam que, no momento da queda de uma pinha no pátio da prisão, ele disparara um tiro à queima-roupa contra um guarda, pondo-se em fuga.
Como uma pinha que cai e se desfaz em escamas, como um pinhão que é preciso partir, como a película que o envolve e vai voando, o episódio sugeriu às amigas — quase como um aviso — o fruto seco do passado. Com a fuga do prisioneiro desprendera-se uma parte das suas genealogias, uma história que merecesse ser conhecida, como se houvesse alguém que não quer ser descoberto.
O Picapau tinha explicado, invocando as leis da física, a razão por que estouram as pinhas com o calor, mas tanto Charlotte como Augusta pensaram numa metáfora sem saber bem porquê.
O passado unia-os através de uma relação familiar que a ninguém interessava relembrar, mas de forma oposta — ele procurava esquecer, elas procuravam lembrar.
Correndo entre caldeiras vulcânicas, túneis, florestas e aldeolas, Picapau conseguiu fugir da prisão e do seu passado, até ser recapturado no momento em que se preparava para obrigar à mão armada dois pescadores duma traineira a levarem-no para outro porto da ilha de São Miguel. As duas amigas, prestes a regressarem a Londres de mãos vazias, queriam compreender porque é que ele terminou abruptamente com a visita quando elas lhe perguntaram se sabia o que era feito do Gigante, o ex-marido pouco recomendável de Charlotte, e um dos cinco pára-quedistas que apareciam numa foto antiga. Ainda tentaram uma segunda entrevista com o Picapau, mas ele, depois da fuga, foi posto em regime de incomunicabilidade por tempo a decidir pelo juiz.
Porque estalam as pinhas com o calor? Porque é impossível trazer o passado para o presente?
“Tem a ver com a expansão térmica dos sólidos, ou seja, com a variação da temperatura e da humidade. Quando está calor, as pinhas secam e retraem-se. Depois estalam e caem”, tinha explicado o Picapau deixando-as de boca aberta de espanto. Ele é louco, de certeza, comentaram elas, longe de imaginar que lhes estava a dizer, sem o dizer, que esse era o seu plano de fuga.
Três meses depois, Charlotte recebe uma chamada telefónica de Augusta.
— Recebi uma carta do Picapau — gritou alvoraçada do outro lado.
— Este passado não parece trazer consigo nada de bom, acho que deveríamos enterrá-lo de vez e não abrir essa carta, responde receosa Charlotte.
Augusta conta a Charlotte que no verso do envelope Picapau escrevera “Porque estalam as pinhas com o calor” e diz-lhe:
— Charlotte, vamos finalmente desvendar o diabo do segredo!
— Com essa frase na badana algo me diz que não devemos abrir essa carta. Por favor, Augusta, vamos esquecer este assunto. Laços familiares ligam-nos a esta história e ainda trazemos problemas para a nossa família. A frase parece um aviso: pinhas que estalam com o calor, pinhas que devem cair por terra, esquecidas da nossa história.
Augusta começa por resistir. A vontade de saber qual o conteúdo que a carta escondia era muita, mas concordava com as palavras sensatas de Charlotte e acaba por guardar o envelope numa gaveta, decidindo não o abrir.
— Um louco como o Picapau não pode vir trazer-nos nada de bom, vamos preservar a nossa família desta história que teima em cair da árvore.
A AUTORA: Rita Blanco Clemente
Um parêntesis para sonhar e ficar perto de uma personagem de um filme de Kieślowski, com uma sala grande e um colchão no chão, rodeada de livros, música e cultura. E seria professora de Filosofia algures por aí. Começou por querer ser coreógrafa itinerante, pois tudo era dança na adolescência que viveu no Conservatório de Lisboa e que a levou a viajar sozinha muito nova. Mas depois foram os textos filosóficos e a crítica que mais a fascinaram. Hoje, se sonhasse, seria uma cronista dos seus horizontes — não fosse o horizonte, como diz Victor Hugo, o sublinhar do infinito —, uma eterna deleitada pela arte, sempre debruçada naquela primeira sala de ensaio do Teatro D. Maria, em Lisboa, onde assistiu a uma representação desse vulto que foi Mário Viegas. E também não seria ninguém sem a música e esse alimento do espírito que nos dão as pinturas de Vermeer, Rembrandt, Munch e tantos outros. Foi numa livraria que trabalhou e partilhou a paixão pelos livros e foi como redactora que fez parte do departamento de comunicação de uma autarquia. Mas, na verdade, entraria de carro à noite num filme de Duras, Tarkovsky, Wim Wenders, Godard ou Varda e finalmente sonharia com a sua personagem de algodão sóbrio, os livros e as palavras, a procura de justiça e o cheiro da noite, dos astros connosco. Seria um nonsense vivido como em Nanni Moretti ou Pedro Almodóvar, quando sonha.