Vivendo perto de zonas húmidas na ilha italiana da Sardenha, Anna Rita Cocco está de luto pela perda do seu pai, que morreu em coma poucas semanas depois de uma picada fatal de mosquito.
"O meu pai estava cheio de vida e costumava andar quilómetros todos os dias. Estava à espera que ele morresse a dada altura, mas não a sofrer assim, tirado de mim por um mosquito", conta Anna sobre o seu pai, Bernardino, que morreu com 80 anos.
A Itália só foi declarada livre de malária pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1970, mas agora outras doenças menos conhecidas, transmitidas por mosquitos ou carraças, estão a aumentar.
Uma combinação complexa de aquecimento global, alterações na utilização dos solos e maior circulação de pessoas e bens está a contribuir para a propagação de doenças — como a dengue ou a doença de Lyme — a novas regiões, numa tendência de agravamento, confirma um painel de cientistas das Nações Unidas.
As aves migratórias infectadas por mosquitos e que voam mais de 3200 km desde o Senegal, na África Ocidental, foram identificadas como portadoras do vírus do Nilo Ocidental que matou o pai de Anna Cocco na Sardenha, onde os Verões estão a tornar-se mais quentes.
A ilha mediterrânica e as zonas do norte de Itália, onde o vírus também se está a propagar, estão a sofrer mais episódios extremos de cheias e secas.
A abundância de água ajuda os mosquitos a reproduzirem-se, enquanto a seca e a falta de árvores restringem os ecossistemas das aves migratórias, forçando-as a um contacto mais próximo e permitindo a propagação de algumas doenças. "As pessoas parecem não estar conscientes da ameaça", lamenta Cocco.
As mudanças atrás do salto do vírus do Nilo
Os epidemiologistas identificam a mudança de habitat como um dos principais factores por detrás do salto intercontinental do vírus do Nilo Ocidental.
Identificada pela primeira vez em 1937 na região do Nilo Ocidental, no Uganda, a doença propagou-se em África e noutros continentes. Só nos Estados Unidos morreram quase três mil pessoas desde o primeiro surto em Nova Iorque, em 1999.
Nas casas de barro vermelho da aldeia de Maka Diama, no noroeste do Senegal, as mulheres fazem sabão a partir de plantas que crescem num rio próximo, que vendem a turistas e hotéis locais, e cozinham arroz cultivado nos arrozais circundantes.
Nos últimos anos, assistiu-se a grandes mudanças nesta região húmida repleta de crocodilos e aves migratórias, havendo um aumento na produção de arroz, impulsionado pelos esforços do governo para reduzir a dependência do Senegal do arroz importado.
As barragens construídas perto da costa para reter e proteger as reservas de água doce da água salgada do mar abrandaram os caudais dos rios e os fertilizantes utilizados nos arrozais incentivaram o crescimento das plantas fluviais.
Este impulso para uma maior auto-suficiência alimentar triplicou a produção de arroz para 1,3 milhões de toneladas numa década. Mas as mudanças no uso da terra perturbaram os delicados habitats das zonas húmidas, ajudando os mosquitos que põem ovos na água estagnada.
"Actualmente, há tantos mosquitos aqui", diz Arame Diop, um dos fabricantes de sabão da aldeia. "Muito mais do que antigamente". A família de Diop já dorme debaixo de redes mosquiteiras para evitar a malária, que é endémica no Senegal.
Assane Gueye Fall, um entomologista do Laboratório Nacional de Investigação Pecuária e Veterinária na capital, Dakar, disse que as políticas do Senegal procuram melhorar a segurança alimentar e hídrica.
"Mas para resolver um problema, criaram outro", disse ele sobre o que chamou de "explosão de mosquitos" e de doenças.
Transportados na asa de uma ave
Os portadores de longa distância do Nilo Ocidental são aves que recebem o vírus através de picadas de mosquitos infectados e que depois voam nas suas rotas migratórias, para serem novamente picadas por mosquitos que depois transmitem a doença a pessoas e outros animais, principalmente cavalos.
Flamingos, garças, cegonhas e aves de rapina são algumas das muitas espécies migratórias que se encontram nas zonas húmidas do Santuário Nacional de Aves de Djoudj, Património Mundial da UNESCO, perto de Maka Diama.
Navegando lentamente no seu barco, o capitão Ibrahima Ndao, o conservacionista do parque, explicou como as mudanças abruptas no uso da terra estão a ter impacto nas zonas húmidas. Os pelicanos voam por todo o lado, apanhando peixe para as suas crias.
"Tem havido uma expansão significativa dos campos de arroz em redor da barragem. Mas temos de nos certificar de que o ambiente das aves é preservado", disse ele.
"Se o espaço do seu ambiente for reduzido, é mais fácil a propagação de doenças", avisa Ndao, apontando para o aumento do crescimento de plantas ao longo das margens, incluindo as utilizadas pelas mulheres de Maka Diama para fazer sabão.
Ndao sublinha a importância de uma "abordagem de saúde única" que considere a saúde humana e animal como uma questão única.
Na capital Dakar, Babacar Ngor Youm, director dos Parques Nacionais do Senegal, no âmbito do Ministério do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, afirmou que devem ser feitas "escolhas políticas" para aumentar a produção alimentar, apesar dos riscos de efeitos secundários nocivos.
A soberania alimentar é necessária, "como demonstrou a guerra da Ucrânia", referindo-se ao aumento dos preços mundiais dos alimentos após a invasão da Rússia pelo país vizinho.
"Com a urbanização, vem a desflorestação... e se houver menos espaço para as aves, as doenças propagam-se mais rapidamente", diz Youm, que enfrentou antes um surto de gripe aviária no parque de Djoudj.
Tal como na Europa, o Senegal também está a perder habitats naturais devido à desertificação exacerbada pelas alterações climáticas, forçando os animais a um contacto mais próximo com as comunidades humanas.
É preciso saber mais
As doenças transmitidas por vectores - como a malária, a dengue, o Zika, a febre-amarela e o Nilo Ocidental - são consideradas pela OMS como uma ameaça crescente em África, podendo afectar mais de 800 milhões de pessoas, cerca de 70% da população.
O vírus do Nilo Ocidental está presente num número crescente de países, da Austrália à Venezuela. Como é fácil confundir o vírus do Nilo Ocidental com uma gripe genérica ou outras doenças transmitidas por mosquitos, os doentes raramente são testados.
Consequentemente, o impacto do vírus em África é praticamente desconhecido. As populações locais também desenvolvem resistência à doença. Com pouca informação, torna-se também mais difícil ainda construir modelos sobre a forma como o vírus se pode propagar na Europa e noutros locais.
A doença do Nilo Ocidental é frequentemente assintomática ou ligeira, mas uma em cada 150 pessoas que contraem o vírus pode desenvolver complicações neurológicas graves, incluindo meningite, paralisia e mesmo a morte.
Em 2022, 12 países europeus registaram 1 335 casos do vírus do Nilo Ocidental adquiridos localmente - com alguns outros trazidos por viajantes internacionais - e 104 mortes. Foi o número mais elevado de casos desde um pico de mais de 1500 em 2018.
De acordo com o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, a Itália foi o país da União Europeia que mais sofreu em 2022, com 51 mortes, à frente de 33 na Grécia e cinco na Roménia.
Uma campanha de saúde pública está a alertar as pessoas e as autoridades estão a intensificar os testes às aves e aos mosquitos. O principal vector é o mosquito Culex, mas o que torna o Nilo Ocidental potencialmente endémico é o facto de poder ser transmitido por mais de 50 espécies de mosquitos e por carraças, disse o entomologista Assane Fall, em Dakar. Em contrapartida, a dengue, por exemplo, depende "apenas" de uma ou duas espécies.
Não existe vacina contra o Nilo Ocidental disponível para os seres humanos, embora tenha sido desenvolvida uma para os cavalos. "A expansão do Nilo Ocidental não pode ser travada", disse Fall. "É por isso que precisamos de investigação em colaboração entre África e a Europa. E a prevenção em animais e em humanos deve ser considerada como uma só."