Em 2100, as cheias extraordinárias de 100 anos podem acontecer todos os anos

As alterações climáticas já mudaram a forma como temos de calcular o risco de inundações relacionadas com a subida do nível dos mares. É preciso actualizar a forma como defendemos as zonas costeiras.

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O furacão Sandy, em 2012, afectou oito países e provocou cheias que causaram mortos no Haiti, República Dominicana e Porto Rico, entre outros locais lucas Jackson/Reuters
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Há cheias tão grandes que só têm a probabilidade de ocorrer uma vez em cada 100 anos. Mas um novo estudo diz-nos que a subida do nível do mar causada pela emissão de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono (CO2), alterou esta probabilidade. Já em 2050, várias regiões costeiras do mundo poderão estar sujeitas a cheias de 100 anos a cada nove a 15 anos. E no fim do século, em 2100, estas inundações que hoje são extraordinárias podem acontecer todos os anos.

As alterações climáticas vão mudar o nível de risco de várias catástrofes naturais. “O limite que hoje esperamos que seja excedido uma vez a cada 100 anos, em média, vai ser ultrapassado com uma frequência muito maior num clima mais quente, até que deixem de ser consideradas cheias de 100 anos”, disse Hamed Moftakhari, citado num comunicado da União de Geofísica Americana. Moftakhari é um engenheiro civil e professor da Universidade do Alabama (Estados Unidos), e um dos autores do estudo publicado na revista Earth’s Future.

Apesar do nome, uma cheia de 100 anos não tem de acontecer a cada século. O que a expressão quer dizer é que se trata de um acontecimento extremo, que tem uma probabilidade de ocorrer uma vez a cada 100 anos. Trata-se de um cálculo de probabilidades. Uma cheia destas dimensões pode acontecer num determinado local num intervalo mais curto, ou só acontecer para lá de um período de 100 anos.

As cheias nas zonas costeiras podem dever-se a água do mar que é empurrada para terra devido a tempestades, marés ou ondas. Mas o estudo da equipa de Moftakhari concentrou-se num factor que actua a uma escala mais longa: a subida do nível do mar. Como é algo que não acontece de forma repentina, as infra-estruturas costeiras e as comunidades que lá vivem vão ficando cada vez mais próximas da água, à medida que o mar vai subindo, e vão-se tornando mais vulneráveis a fenómenos extremos, como tempestades. Por isso, é preciso planear e preparar-se.

O nível médio do mar está a subir em todo o globo ao dobro do ritmo que subia na década de 1993 a 2002, e atingiu um novo recorde em 2022, adiantou a Organização Mundial de Meteorologia (OMM) em Abril.

Mas o que os autores deste estudo concluíram é que as tendências históricas, como as estimativas da ocorrência de cheias de 100 anos, deixaram de servir para fazer uma previsão da frequência das inundações no futuro – já bem próximo, até meados do século. E isso por causa das alterações climáticas.

Para os seus cálculos, os cientistas usaram dados de mais de 300 marégrafos (instrumentos que registam o fluxo e refluxo das marés num determinado ponto da costa) espalhados pelo mundo, para fazer uma análise de tendências e estimar quais podem ser os níveis extremos de subida do mar no futuro. Esta análise foi feita à luz de dois cenários elaborados pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), um de emissões moderadas de gases de efeito de estufa (RCP4.5) e outro de emissões elevadas (RCP8.5).

Seis a 11 vezes mais frequentes

Com um cenário moderado, em que as emissões chegam ao pico em 2040 e começam a decrescer a partir daí, na maioria dos locais analisados, a frequência das cheias de 100 anos em 2050 seria seis vezes maior. No cenário mais drástico, em que as emissões continuam a aumentar até ao fim do século, as grandes cheias deste tipo seriam 11 vezes mais frequentes.

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inundações causadas pela tempestade Daniel em 10 de Setembro no leste da Líbia deixaram milhares de pessoas mortas e desaparecidas EPA

“Uma vez que mais de 600 milhões de pessoas vivem em regiões costeiras de baixa altitude, e que se espera que este número aumente no futuro, os nossos resultados sublinham a necessidade de uma gestão abrangente dos riscos de cheia que considere as alterações no nível do mar extremas nas próximas décadas”, escrevem os investigadores.

A questão é que os engenheiros que concebem estruturas como diques, paredões ou molhes para proteger as comunidades costeiras de inundações, e tentar evitar desastres, baseiam-se num conceito estatístico que assume que os padrões observados no passado vão continuar sem alterações no futuro. São estacionários.

“Mas há muitos factores relacionados com as alterações climáticas que modulam estes padrões. Já não podemos assumir que são estacionários os dados das inundações costeiras”, afirmou Moftakhari, citado no comunicado de imprensa.

Preparar-se

A análise estatística feita neste estudo recorreu a métodos não estacionários, e os cientistas concluíram que o desvio no padrão de níveis extremos do mar não será uniforme. Vai variar consoante os locais.

As latitudes mais elevadas (mais a norte ou mais a sul) vão ter uma queda no nível do mar, à medida que as plataformas de gelo pesadas se derreterem e a terra que está por baixo se erguer. Mas em regiões como o Golfo do México a subida do nível do mar está a acontecer mais rapidamente do que a média global, dizem os cientistas, porque a terra está a afundar-se. Cada comunidade costeira vai precisar de soluções adequadas às suas necessidades, sublinhou Moftakhari.

“O grande desafio é que a maioria das ferramentas, orientações de design e manuais baseiam-se todos na assunção de que padrões observados no passado vão continuar sem alterações no futuro”, explicou Moftakhari. “Têm de ser actualizados para que possamos manter-nos a par e passo com o ritmo da mudança”, afirmou.

O cientista faz, no entanto, questão de recordar que os desastres não resultam apenas do acaso: a acção (ou falta de acção) humana contribui fortemente para o desfecho. “Não se esqueçam de que tudo isto tem a ver com o nível da água que esperamos ter sem medidas de mitigação [redução do risco]. Haverá avanços tecnológicos que podem aumentar a resiliência das comunidades costeiras”, conclui Moftakhari, numa nota optimista.