Instabilidade política e degradação de infra-estruturas potenciaram mortes na Líbia
Balanço provisório do número de mortes provocadas pelas inundações sobe para mais de 11.300, numa altura em que mais de dez mil pessoas estão dadas como desaparecidas.
Duas décadas de desinvestimento na manutenção de barragens, num período marcado pela deposição do ditador Muammar Khadafi e por uma guerra civil que resultou na formação de dois governos paralelos, é um cenário que ajuda a explicar o elevado número de mortes nas inundações na cidade portuária de Derna, no leste da Líbia.
Segundo o vice-presidente da câmara de Derna, Ahmed Madroud, as duas barragens que cederam à enxurrada provocada pela passagem da tempestade Daniel não eram reparadas desde 2002; e o director do instituto líbio Sadeq, Anas El Gomati, disse ao site do canal Al-Jazeera que "a corrupção e a má gestão financeira são as causas por trás da degradação das infra-estruturas".
"Os culpados são os sucessivos regimes", disse El Gomati. "O investimento militar tem canibalizado o orçamento para as infra-estruturas públicas, que são destruídas, no leste, para serem contrabandeadas e vendidas às peças."
"Não consigo dormir"
Nesta sexta-feira, a secretária-geral na Líbia da Federação Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, Marie el-Drese, actualizou o balanço de mortos para mais de 11.300, sublinhando que mais de dez mil pessoas estão ainda dadas como desaparecidas. Na sua passagem pelo sul da Grécia, na semana passada, a tempestade Daniel — a pior no país em várias décadas — fez pelo menos 15 mortos, segundo um balanço provisório.
"Tenho de dizer que esta inundação na Líbia é uma das piores catástrofes a que assisti em toda minha carreira, e eu ando há 11 anos a cobrir guerras e desastres naturais", disse na rede social X (o antigo Twitter) o jornalista Nader Ibrahim, autor de documentários de investigação na Ucrânia e em países do Médio Oriente e de África.
Na mesma rede social, a jornalista Jenan Moussa, do canal Al-Aan, com sede no Dubai, partilhou o testemunho de Maryam al-Ghaithi, uma jovem de 22 anos que se encontrava no seu apartamento — no 1.º andar de um prédio de oito andares — quando a torrente de água, com uma altura estimada em sete metros, atravessou Derna a caminho das águas do Mediterrâneo.
"Despedimo-nos dos nossos entes queridos", disse a jovem, que fugiu com a família e vizinhos para o terraço do prédio. "Disse às minhas irmãs e ao meu irmão mais novo para ficarmos de mãos dadas, pelo menos morreríamos juntos. Ainda hoje não consigo dormir, estou sempre a pensar naqueles momentos terríveis."
Segundo Al-Ghaithi, pelo menos uma vizinha sua morreu já depois de escapado à torrente, quando caiu numa fenda que se abriu no chão — uma de várias provocadas pela passagem das águas, segundo a jovem — e que dificilmente podia ser avistada no meio do pânico e da escuridão.
"Não restava nada no centro da cidade, nem sequer reconheci a minha rua", disse Al-Ghaithi. "Havia corpos na rua e a flutuar na água. Não havia carros em lado nenhum. Quando estávamos no 5.º andar, vimos veículos do Crescente Vermelho a serem engolidos pelas águas e atirados ao mar."
Estado falhado
Para o jornalista Peter Beaumont, do Guardian, um repórter experiente que fez vários trabalhos na Líbia e que se encontra agora a cobrir as consequências do terramoto em Marrocos, parte da explicação para o elevado número de mortos em Derna — possivelmente mais de 20 mil, ou cerca de 1/4 da população total da cidade, estimada em entre 85 mil e 90 mil — é o facto de a Líbia ser "um Estado falhado".
"Por outro lado, Marrocos é um Estado moderno e funcional. As pessoas comuns têm-se mobilizado em grande escala, e há um forte sentimento de nacionalidade", disse Beaumont ao Guardian.
"Mesmo sendo um Estado sórdido e autocrático, a Líbia de Khadafi funcionava e tinha muito dinheiro do petróleo. A população não tinha direitos nem liberdades, mas o país funcionava e tinha uma infra-estrutura decente, o que não acontece hoje em dia."
Na quinta-feira, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) veio dizer, num comunicado, que "a tragédia na Líbia põe a nu as consequências devastadoras das condições meteorológicas extremas e de Estados frágeis com infra-estruturas deterioradas".
"A situação política é um factor de risco, e estamos a assistir a isso em vários países", disse o secretário-geral da OMM, Petteri Taalas.