O Caso do Cadáver Esquisito 15: “O estalar das pinhas ao calor”, por Katia Delimbeuf

A “novela” de mistério, surreal e com muitas viagens, escrita por 22 autores, avança. Aqui, pelos Açores e com aparição do Picapau, a viver na “prisão de alta segurança” de Ponta Delgada...

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos DR
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Charlotte tenta agora, a todo o custo, acordar Augusta do desmaio. Aplica-lhe palmadas leves no rosto, cuja intensidade vai aumentando à medida que não vê reacção. Era a segunda vez em menos de 24 horas que um episódio destes se repetia, e Charlotte começava a suspeitar que Augusta poderia estar a esconder um problema de saúde grave. Pouco a pouco, a mulher foi recuperando as cores, enquanto o Jack Russell lhe lambia efusivamente a face.

— Tem alguma questão de saúde que eu deva saber? Estou a ficar um bocadinho preocupada.

— É apenas uma reacção vagal. Tenho isto há anos, mas agravou-se desde que entrei na menopausa. A minha principal preocupação é antecipar a queda, afastar-me de objectos duros, como lavatórios ou lava-loiças.

— E o que causa essa reacção?

— Costuma estar associada a momentos de maior ansiedade. Começo a sentir o coração acelerar, e, quando dou por mim, é tarde... Neste caso, quando o João falou na cadeia de Ponta Delgada, dizendo que esse Picapau está lá preso por um crime grave, veio-me à memória uma conversa que ouvi a minha tia-avó Sofia ter com a minha avó Teresa há muitos anos. Elas não sabiam que eu estava a ouvir. Falavam de um homem na família que cometera um crime horrendo e acabara desterrado na ilha. Ao ouvir a menção do João à capital dos Açores, acendeu-se-me uma campainha.

— Então acha que o homem da polaroid pode ser esse familiar que cometeu um crime e está preso?

— Não sei, Charlotte. Mas só temos uma forma de descobrir: indo até lá.

Os olhos esbugalhados de Charlotte revelaram que não esperava aquela resposta. Augusta pousou-lhe a mão no ombro e reforçou:

— E algo me diz que esse Picapau pode trazer luz sobre o desaparecimento do seu marido.

Ainda em Londres, Augusta deu início ao pedido de visita ao recluso, processo que poderia ser moroso, visto a prisão de Ponta Delgada ser de alta segurança e não haver relação de parentesco comprovada entre ela e o Picapau. Contudo, as relações abrem portas mais depressa do que muitas chaves — e ela mantinha umas quantas do seu tempo de vida diplomática.

Uma semana mais tarde, as duas mulheres aguardavam, ligeiramente nervosas, na sala de visitas da cadeia açoriana. A prisão situava-se, isolada, no meio de um pinhal. O calor húmido de Agosto sacara de todas as malas leques, abanicos e lenços para limpar o suor da testa ou do buço. De tempos a tempos, as janelas devolviam o eco das pinhas estalando sob a canícula e caindo ruidosamente no pátio da prisão.

Picapau não conseguiu disfarçar o espanto, quando viu duas mulheres de meia-idade, arranjadas, penteados fixos pela laca, à sua espera. Que raio lhe quereriam? Mas, ao fim de 15 anos a ver o sol aos quadradinhos, qualquer visita é bem-vinda. Ajeitou o palito ao canto da boca e sentou-se.

— A que devo a honra da vossa visita, minhas senhoras? — ensaiou no seu melhor sorriso, revelando um dente de prata num dos incisivos frontais.

Charlotte fixou-se no pormenor, hipnotizada. Augusta deu-lhe um toque com o joelho por baixo da mesa, e iniciou a conversa, com inesperado pulso.

— O senhor não sabe quem somos, mas nós temos uma ideia de quem o Picapau é — enquanto dispunha a fotografia dos cinco para-quedistas à sua frente.

— Ena, pá! Já lá vão uns anitos...

— Pois, é verdade. Viemos perguntar-lhe se sabe onde está este homem, ao seu lado na fotografia, o Gigante.

Picapau levantou os olhos e mirou as duas mulheres.

— Quem quer saber?

Augusta ignorou a pergunta e continuou.
— Eu sei que pode não parecer, mas nós conhecemos pessoas em comum. E algumas podem melhorar, ou piorar, a sua vida aqui dentro.

Augusta seguia embaladíssima numa jogada de póquer recheada de bluff. “All in.”

— Sabe quem é o Guedes, não sabe? O chefe dos guardas que controla as chaves das celas, o acesso à cozinha, ao despenseiro... O Guedes pode arranjar maneira de lhe fazer chegar aquelas cigarrilhas cubanas de que tanto gosta... Ou aquele whisky velho...

— E você acha que é isso que me vai fazer falar? — soltou com um remoque, mudando o palito de canto da boca.

— Acho que ao fim de tantos anos aqui, o senhor merece alguns confortos... Mas tem de fazer por merecer.

Picapau sorriu de esguelha. O silêncio parecia abrir uma brecha na sua boa vontade em colaborar. Pressentindo isso, Augusta pôs-lhe à frente a polaroid com o casal que acreditava ser da sua família. O semblante de Picapau alterou-se por completo. Levantou-se e fez sinal ao guarda:

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Carlos Matos

— Esta visita terminou!

Quando já ia a meio do caminho, parou e voltou para trás.

— Na verdade, tenho algo a dizer às senhoras. Sabem por que razão as pinhas caem com o calor?

Augusta e Charlotte entreolharam-se, baralhadas.

— Tem a ver com a expansão térmica dos sólidos, ou seja, com a variação da temperatura e da humidade. Quando está calor, as pinhas secam e retraem-se. Depois estalam e caem.

E virou costas, deixando as duas mulheres sem saber se o homem teria o juízo todo. Só passados dois dias a enigmática frase ganhou sentido. Ao abrirem a “Gazeta de Ponta Delgada”, uma notícia dava conta da fuga de um prisioneiro. Aparentemente, o recluso aproveitara o exacto momento da queda de uma pinha de lá do alto para disparar um tiro à queima-roupa na têmpora de um guarda e pôr-se em fuga.


A AUTORA: Katia Delimbeuf
Nascida entre duas culturas, a portuguesa e a francesa, traz nos genes esse gosto andarilho que a leva a gostar de explorar o mundo como se este não tivesse fim. É o mergulho nas almas humanas que exerce sobre ela o maior fascínio. As palavras enfeitiçaram-na desde cedo, tendo feito disso profissão no jornal Expresso durante 17 anos, com perninhas ocasionais para media franceses (TF1, Canal Plus...). Teve ainda a sorte de viajar a soldo para revistas de viagens durante alguns anos, o que lhe permitiu viver e fixar momentos perfeitos no mapa-múndi pessoal e profissional. Continua a acreditar que a vida perfeita passa por ter uma profissão em que é paga para ler e escrever.

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