Jovens que levaram 32 países a tribunal pelo clima terão luta de “David contra Golias”

Seis jovens portugueses estão a processar 32 países por falta de acção climática num caso inédito no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Defesa dos países desvaloriza impactos alegados pelos jovens.

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Ilustração José Alves
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No dia 27 de Setembro, seis jovens portugueses vão comparecer perante a grande chambre do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), em Estrasburgo, para enfrentar as equipas legais de 32 Estados europeus, concertadas para fazer cair os seus argumentos, no primeiro caso climático aceite pelo TEDH. “Este é verdadeiramente um caso de David contra Golias, não tem precedentes em termos de escala, nem de consequências”, afirmou Gearóid Ó Cuinn, director da Global Legal Action Network (GLAN), entidade que tem feito o acompanhamento jurídico dos jovens, ao descrever toda a máquina legal apontada aos seis portugueses.

O PÚBLICO teve acesso às observações feitas pelos Estados em resposta às questões enviadas pelo TEDH ao longo dos últimos três anos. O tom geral é de desvalorização das experiências dos jovens. O Estado português, por exemplo, classifica algumas das questões levantadas como “meras suposições ou hipóteses vazias” e afirma que os argumentos dos requerentes não são apresentados “de forma convincente nem com informação factual sólida”.

A trivialização dos impactos relatados pelos jovens é outra marca das respostas. “Os factos que os requerentes referem não trazem provas suficientes para considerar que terão sofrido consequências que vão além das dificuldades comuns que os indivíduos enfrentam no dia-a-dia”, lê-se na argumentação da Estónia. O Reino Unido também afirma que não há provas de que os “impactos alegados” pelos jovens “foram causados pelas alterações climáticas, por oposição aos efeitos normais de viver no Sul da Europa”.

Os Estados usam expressões como “especulativo” (Alemanha) ou “puramente hipotético” (Bélgica) para desvalorizar os argumentos dos jovens sobre o impacto que o agravamento das alterações climáticas terá no seu bem-estar. A Grécia vai ainda mais longe: “Os efeitos das alterações climáticas, tal como registados até agora, não parecem afectar directamente a vida ou a saúde humanas.” Uma observação que ganha uma triste ironia tendo em conta os incêndios devastadores e inundações que assolaram o país este Verão (“A crise climática pode ser uma realidade, mas não pode ser uma desculpa”, reconheceu mesmo o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis).

Nas suas respostas, os países alegam ainda que “os requerentes não residem numa área reconhecida como estando em particular risco de calor devido aos impactos das alterações climáticas”. Apesar das provas científicas que mostram que Portugal será, de facto, particularmente afectado a começar pelo relatório de 2018 do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) onde o Mediterrâneo era identificado como um hot spot das alterações climáticas , os Estados (em particular o português) focam-se maioritariamente em desvalorizar este argumento, alegando que os concelhos onde os jovens residem não são, especificamente, considerados de maior risco.

As observações de Portugal concluem, com base na argumentação legal, e reflectindo a posição adoptada pelos outros Estados, que “este caso deve ser considerado inadmissível e deve ser rejeitado”.

“É triste”, lamenta André dos Santos Oliveira, de 15 anos, em conversa por telefone com o Azul. “Estamos a tentar dar aos governos uma segunda oportunidade e o nosso próprio Governo usa estes contra-argumentos, é um pouco condescendente.” Ao seu lado, a irmã Sofia Santos de Oliveira, hoje já com 18 anos e acabada de entrar na universidade, comenta que não será uma luta fácil, mas continuam com “força de vontade para [continuar] e não [desistir]”. “O tribunal deu grande importância à nossa voz”, sublinha Sofia, com entusiasmo.

Sinais positivos

Enquanto os governos defendem até ao fim que o caso não deveria ter sido sequer admitido pelo TEDH, o tribunal tem tido uma posição diferente. O primeiro sinal foi a decisão de dar prioridade à análise deste caso, a chamada “fast-track”.

O processo iniciado pelos seis jovens, conhecido como “Duarte Agostinho e Outros v. Portugal e 31”, foi o primeiro caso climático a ser apresentado ao TEDH, em Setembro de 2020. Desde então, chegaram ao tribunal outros dez casos relacionados com alterações climáticas. Dois deles já foram rejeitados, seis encontram-se pendentes, e os outros dois — “​Verein KlimaSeniorinnen e Outros v. Suíça” e “​Carême v. França” foram escolhidos para, assim como os seis jovens portugueses, serem ouvidos em tribunal pleno, a grande chambre, perante um colectivo de 17 juízes.

Apesar da jurisprudência já alargada em matérias ambientais, o tribunal nunca tomou decisões sobre casos relacionados com o clima de forma mais específica. O resultado destes casos será, portanto, decisivo para a jurisprudência em matéria de clima e direitos humanos na Europa. Pelo menos é o que esperam os jovens. “Os governos de todo o mundo têm o poder de impedir as alterações climáticas, e os governos da Europa e os governos europeus estão a optar por não o fazer”, afirmou Catarina Mota, de 23 anos, outra das jovens protagonistas do processo, na conferência de imprensa online esta segunda-feira, acompanhada dos outros jovens os irmãos Cláudia e Martim Duarte Agostinho, além de André e Sofia.“Quando os governos não nos protegem, cabe ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos intervir.”

Se tudo correr bem, descreve o advogado Gerry Liston, da equipa legal da GLAN, esta decisão pode funcionar como “um tratado vinculativo imposto pelo tribunal aos Estados, obrigando-os a acelerar rapidamente os seus esforços de atenuação das alterações climáticas”. Em termos jurídicos, afirma, é um gamechanger uma mudança das regras do jogo.

O tom da conversa por telefone com o advogado é de esperança. Quando submeteram o caso em Setembro de 2020, descreve, os seis jovens argumentavam que três direitos previstos na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) estavam a ser violados pela insuficiente acção dos Estados: o direito à vida (art.º 2) e ao respeito pela vida privada e familiar (art.º 8) matéria em que o TEDH encontrou violações em vários casos ambientais anteriores e a proibição de discriminação (art.º 14) em razão da idade.

Foi o próprio tribunal que, na resposta enviada em Novembro do mesmo ano, “olhou para os factos” e, considerando que “a evidência do impacto é tão grande”, suscitou questões sobre poder também estar em causa a proibição de tortura e tratamento desumano ou degradante (art.º 3) que “nunca foi considerada uma violação no caso de danos ao ambiente natural”, explica o advogado e recomendou a sua inclusão no processo.

Resposta do Governo

Questionado sobre a estratégia adoptada na defesa legal contra os argumentos dos jovens, o gabinete de imprensa do Ministério do Ambiente e da Acção Climática responde que Portugal rejeita a “alegação” de que os Estados visados no processo “não estão a cumprir os seus compromissos de luta contra as alterações climáticas”. “A República Portuguesa rejeita essa alegação, sustentando que as suas acções vão no sentido do cumprimento das suas vinculações internacionais neste âmbito.”

A representação da República Portuguesa junto do TEDH, explica o gabinete, é assegurada através do Ministério Público “que, neste caso, se articulou com os serviços jurídicos do Ministério do Ambiente e da Acção Climática”. Nas respostas ao TEDH, Portugal assume muitas vezes respostas focadas na evolução dos esforços de mitigação de emissões ao longo dos últimos anos, sublinhando que, tanto a nível nacional como no contexto da UE, “tem defendido consistentemente posições com o objectivo de promover uma maior ambição e acção” climática global.

“Efectivamente, [o Governo] considera que existe uma interacção inegável entre a protecção do ambiente e a protecção dos direitos humanos”, lê-se na resposta ao Azul. “São essas considerações que têm pautado a actuação de Portugal, quer no plano interno, quer no plano internacional”, remata o MAAC, sem abordar a argumentação legal, que desvaloriza os casos individuais relatados, ou comentar directamente a argumentação apresentada de que o “consenso sobre 1,5°C” é uma “ficção”, como afirma, por exemplo, a Bulgária.

Como pode terminar?

O próximo passo é a audiência de 27 de Setembro, mas já é possível pensar sobre o que virá depois. É provável que se siga uma longa espera, tendo em conta que o TEDH demora, em média, entre nove e 18 meses para emitir as suas decisões. Outra incógnita é se as decisões sobre os três casos analisados o dos jovens portugueses e os que foram ouvidos em Março, um contra a Suíça e outro contra França serão emitidas ao mesmo tempo.

Que impacto podem ter as decisões destes três processos, caso o tribunal dê razão aos requerentes? Armando Rocha, professor na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e especialista na área do direito do clima, dá uma resposta cautelosa: “É muito imprevisível.”

As decisões realmente estruturais, como o caso Urgenda, nos Países Baixos, Neubauer, na Alemanha, ou mesmo a recente decisão no estado de Montana, nos Estados Unidos, são mais fáceis de vingar a nível nacional. Contudo, estes casos, considerados gamechangers a nível interno, não tiveram o efeito de contágio que se esperava em termos de desdobramento internacional.

Olhando para o direito internacional, Armando Rocha faz notar que ainda não é claro, na realidade, “se existe alguma obrigação dos Estados de redução dos gases de efeito de estufa”. “No Acordo de Paris, não se fala em obrigação nacional, é uma contribuição. A única obrigação jurídica é comunicar”, explica. A conclusão que retira, ainda que não seja categórico, é que os tribunais internacionais podem não ser “o melhor sítio para esta litigância climática”.

Para Nick Flynn, director do departamento legal da Avaaz, plataforma de mobilização em torno de causas relacionadas com direitos humanos que também tem dado apoio aos jovens, uma das questões centrais deste caso é “decidir se os direitos são reais ou apenas ilusões”. “Os juízes têm a capacidade de transformar os direitos de ilusões em realidade”, diz, recordando que estes têm de ser “mais do que intenções inúteis”.