Uma cadela no corpo de uma feminista

É que a imaginação, quando se apanha de pijama, torna-se ainda mais louca. Como um cão mas em forma de gente, assim era a mulher que me apareceu no sonho.

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Megafone P3: Uma cadela no corpo de uma feminista Ivan Oboleninov/Pexels
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Depois de acesa a culpa, era inútil dosear o gás para manter em lume brando o que sempre acabará por ferver. Espiolhar a integridade tentando impedir a mais ínfima fuga, querer manter a honra intacta como uma maçã inteira diante de um esfomeado era tarefa inútil.

A "culpa-labareda" contornava-se durante o dia mas entrava de arrombo nos sonhos sãos. Os fantasmas que nos acompanham aproveitam a noite e a posição horizontal do corpo para copularem à bruta connosco, sem pedirem consentimento nem autorização. Noite após noite, sonhava com perdas de dentes, mau hálito, que urinava em espaço público, que traía, mentia e era apanhada, e também com crocodilos debaixo da cama e leões no parque de estacionamento.

Imagens que perturbavam até a saliva na almofada e faziam adormecer certas partes do corpo, sobretudo os braços mas também as pernas, e, por vezes, davam cãibras a meio da noite. Dos sonhos bons, agradáveis como as tardes de Primavera sem rinite, nem rasto.

Só imagens obtusas: mensagens indecentes de parentes, perdas de filhos e filhas ou de outras crianças sem filiação à vista. Não era possível terminar estes sustos porque vinham sem som os sonhos a que muitos preferem chamar de pesadelos. Quando a vi numa das imagens criadas pela minha cabeça, que anda à solta na noite, surpreendi-me com a beleza da criatura.

Uma mulher, sim, mas tinha a certeza de que não pertencia ao nosso mundo. Tratava-se de uma mistura de feições das mais belas pessoas e cães com quem já me cruzei presencial e virtualmente. A imagem desta mulher fez-me ter a fé que nunca antes tive. Um rosto tão perfeito e imaculado que só podia ser de concepção divina ou da minha prodigiosa imaginação nocturna.

É que a imaginação, quando se apanha de pijama, torna-se ainda mais louca. Como um cão mas em forma de gente, assim era a mulher que me apareceu no sonho. A estranha atracção imediata tornou-se rapidamente um terror quando arreganhou os dentes para mim, mostrando uma dentadura de ouro em que lhe faltavam alguns dentes.

Quis beijar-me com as suas patas peludas adornadas com anéis e ofendeu-se quando lhe chamei cadela. Mas era o que era, mais perto de um cão do que de pessoa, e eu nunca tive tendência para nenhuma espécie de filias. Rebelou-se com palavras — afinal falava como uma mulher — e disse que chamar-lhe cadela ia contra a sua luta. Era feminista e não ia aceitar afrontas, muito menos de uma mulher.

Fincou-me uma dentada com força na cara. Via-se que me sentia o gosto do sangue. Explicou-me, com o pêlo ensanguentado no queixo, e agora parecia mais um macho de pêra do que uma fêmea, que não era por eu ser mulher que seria poupada. As mulheres que surgissem contra a luta seriam assim maltratadas e benzidas.

Urinou-me então a perna esquerda e seguiu viagem para outro espaço da minha cabeça adormecida. Certo é que deixei de a ver, mas não me passa a sensação e a culpa de ter visto e nomeado uma cadela no corpo de uma feminista.

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