O Caso do Cadáver Esquisito 14: “A resposta que veio do céu”, por Simon Kuin

O 14.º episódio da “novela” escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que dá muitas voltas ao mundo, incluindo algumas por Londres, como é o caso aqui com epicentro em Brixton.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr
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— Aqui temos toda a correspondência com o meu ex-marido. Talvez aqui encontremos a chave para resolver o mistério.

Enquanto Augusta abria os envelopes de correio aéreo com selos de países sempre diferentes, Charlotte começava a ler, com voz trémula, fazendo ecoar no pequeno apartamento londrino de Brixton as confissões do homem que a abandonara em circunstâncias misteriosas, até mesmo suspeitas. Cada nova carta, escrita em letras minúsculas para poupar papel, reforçava nela o sentimento de ter sido traída, décadas atrás. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, deixando marcas molhadas na pele negra. Até o seu Jack Russell, deitado num cantinho, sentiu que algo estava mal e começou a uivar.

— Charlotte, se isto lhe abre demasiadas feridas, devemos desistir.

— Nem pensar, você tem o direito de saber quem são o homem e a mulher da polaroid. Não são os seus pais, já me disse, mas se já sabemos que é sua família, vamos fazer tudo para saber a verdade!

Entre soluços, continuaram a abrir mais envelopes até que caiu ao chão uma velha foto a preto e branco. Era a imagem de um grupo de cinco homens fardados, com a nota “Batalhão de Caçadores Paraquedistas N.o 31 — Camaradas para Sempre”.

Um deles era a cara chapada do enigmático homem da polaroid. No verso da fotografia, uma lista de nomes. Na pequena sala de estar, ouviu-se um grito de entusiasmo. O relógio da igreja vizinha da Our Lady of the Rosary deu as 12 badaladas, as mulheres sorriram finalmente e brindaram com o vinho tinto. Era meia-noite. Tinham dado um passo de gigante em direcção à verdade.

No dia seguinte, outro passo importante. Com a ajuda do Miguel, sobrinho de Charlotte e talentoso hacker, tinham conseguido descobrir os contactos de três dos cinco homens da fotografia, só identificados pela alcunha: o Bezerro, o Cefalóforo e o João das Narsas. O quarto homem, o Gigante, era o ex da Charlotte, e estava fora de questão tentar falar com ele. O quinto, o Pica-Pau, era o homem da polaroid. Como por milagre, o Miguel conseguiu reunir os primeiros três numa videoconferência, e as mulheres começaram, hesitantes e cautelosas, com o seu interrogatório aos velhotes.

Que eram antigos pára-quedistas, não podia haver a menor dúvida. Cada um tinha tatuagens simples e reveladoras nos braços. Não se tinham visto desde tempos imemoriais, mas reconheceram-se de imediato.

— Ó João, estás outra vez com a narsa?, gritou o Bezerro ao microfone do portátil, como se precisasse de se fazer ouvir à distância dos 2500 quilómetros que separavam Kolhorn, no campo holandês, onde estava, do Cercal, no meio do Alentejo.

O Cefalóforo — que devia a alcunha à sua aparência de santo e ao hábito de se comportar como uma galinha sem cabeça — não disse nada, mas desatou a rir na sua biblioteca empoeirada, no alto da cidade velha de Coimbra.

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Carlos Matos

Charlotte, que não estava muito interessada nas piadas foleiras dos veteranos, fez resolutamente a pergunta ao Bezerro:

— Estamos à procura do Pica-Pau. O que é que você sabe dele? Ainda está vivo? Por onde anda?
O Bezerro, hirsuto, enorme e normalmente taciturno, debruçado sobre uma sopa de beldroegas e com um pedaço de pão caseiro na mão, franziu as sobrancelhas e começou a falar.

— Charlotte, eu conhecia muito bem o Pica-Pau e também o seu ex, o Gigante. Mesmo depois de nos despedirmos do Exército, mantivemo-nos em contacto; até cheguei a trabalhar com o Pica-Pau, éramos colegas no matadouro do Montijo. Mas uma noite zangámo-nos e nunca mais nos voltámos a ver. Agora, que já sou velho e me encontro na linha de fogo, ou melhor, do fogo cruzado, quem me dera fazer as pazes com ele e morrer tranquilamente!

— E você, Cefalóforo? — perguntou a Charlotte.

— Não tenho memória activa dele. Depois da tropa, fui beber a água do rio Lete e fiz tábua rasa — respondeu o ex-pára-quedista conimbricense, que adorava mostrar aos antigos companheiros que era o único do grupo com grau académico.

— Cefá, não sejas parvo, não finjas que não sabes de nada — retorquiu o João. — Tu sabes muito bem que o Pica-Pau tinha muito no seu cadastro. Não era apenas um pequeno ladrão, mas um criminoso da pior espécie.

Das profundezas da biblioteca de Coimbra, uma expressão perturbada encheu os ecrãs dos participantes da videoconferência improvisada:

— Porra! — reagiu o Cefalóforo desligando, subitamente assustado com a própria reacção malcriada.

Faltava a resposta do Cercal. O João, que estava conectado a partir de um pequeno café na praça central, onde os amigos se tinham refugiado do calor, enquanto jogavam à sueca em grande gritaria, revelou finalmente o segredo:

— Minhas amigas, se quiserem mesmo saber quem é o Pica-Pau, então deviam visitá-lo na penitenciária de Ponta Delgada, onde está a apodrecer numa cela. Desculpem a minha expressão rude.

Charlotte olhou para a amiga, que de novo, como na noite anterior, desmaiou no chão. Um por um, os veteranos desligaram-se da chamada, deixando um vazio, tal qual pára-quedistas desaparecendo do céu. No apartamento reinava o silêncio, apenas quebrado pelo rosnado do Jack Russell.


O AUTOR: Simon Kuin
Nasceu em 1965 em Bovenkarspel, uma pequena aldeia holandesa no meio do campo. Juventude feliz, caçando rãs e fazendo fogueiras, observando a Lua, sabendo que por lá andavam astronautas aos saltos. Precederam-no gerações de agricultores e empreiteiros, mas a aventura chamava por ele. Depois de estudar História na Universidade de Amesterdão, partiu para o mundo: primeiro Roma, seguido de Florença e depois Lisboa. Nos anos 1990, colaborou como jornalista com o Expresso, nomeadamente para os cadernos Cartaz e Revista. Regressou a Amesterdão pouco depois da viragem do século e continuou ligado ao jornal como correspondente. Trabalha também como tradutor no sector das viagens. Portugal, o país que só conhecia através dos selos postais, nunca o abandonou. Pelo menos uma vez por ano pode ser encontrado em Lisboa e no seu querido Alentejo.

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