O Caso do Cadáver Esquisito 13: “Tchim, tchim à verdade!”, por Mariana Crisóstomo

O 13.º episódio da “novela” escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que dá muitas voltas ao mundo:

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr

Abanou a cabeça, sacudiu os braços e inspirou e expirou três vezes, na tentativa de esvaziar a mente, de sair da memória daquele baú de madeira. Continuou a caminhar a um passo mais acelerado, como se estivesse a fugir e, ao mesmo tempo, ao encontro das respostas às suas perguntas. Quem era o lojista do seu pesadelo? De onde vinha o corte sangrento na sua cabeça, e quem eram o homem e a mulher da polaroid? Todo este caso parecia o cenário de um filme. Caminhou até Southbank e sentou-se num dos bancos com vista para o rio. Tinha comprado uma caixa de cartão com fish&chips que abriu devagar, para não correr o risco de ser roubada por uma das gaivotas que por ali andavam. Quando terminou, o telemóvel tocou; era Charlotte. Tinha a informação sobre o caso.

— Creio ser melhor não partir esta noite. Venha ter ao meu apartamento às 7 da tarde. Envio-lhe a morada por mensagem. Fica lá em casa e amanhã viaja. Fica segura em minha casa, prometo-lhe.

Teve de aceitar. Viajara com o objectivo de descobrir quem era o homem da polaroid e estava cada vez mais perto de o conseguir. Tinha a cabeça à roda. O que sabia é que o homem da fotografia não era seu pai, mas seu irmão ou filho, e que a mulher sentada ao colo do homem, afinal não seria ela, mas a mãe. E porque estava o caso encerrado, mas no dia anterior tinham levantado a mesma informação que ela andava à procura? Não era a única a tentar desvendar o mistério, ou então, alguém estava um passo à frente a tentar encobrir informação.

Faltavam agora cinco horas até às 7. De Southbank caminhou lentamente até à Tate Modern. Viu cada exposição, cada quadro, atentamente, como se fosse a última vez que ali pudesse estar. Às 4h30, começou a caminhar em direcção a sul, a Brixton, onde morava Charlotte. Seria uma hora e meia de caminhada; sentia-se em casa. Por momentos conseguiu esquecer tudo o que estava a acontecer. Voltou a pensar em Paul. Será que se o visse o reconheceria? Será que ainda sentiria o mesmo por ele, agora que deveria ter uns 70 anos? Certamente reconhecê-la-ia. A sua condição, chamemos-lhe assim, mantinha-a jovem, igual a quando tinham tido um caso. Imaginou a cara de espanto se a visse com a mesma idade que quando partilharam aquela cama. Imaginou o seu sorriso doce e a mão no seu rosto. Sorriu e sentiu uma lágrima descer-lhe pela face.

Tinha de esperar uma hora para que Charlotte chegasse a casa. Decidiu ir até ao Brockwell Park, onde se deitou na relva e deixou os raios de sol de fim do dia queimarem-lhe a pele. O sol era diferente. Não era como o sol da sua serra da Estrela. Voltaram-lhe a cair lágrimas pelo rosto. Queria voltar a casa. Que saudades da terra. Pensou em todos os emigrantes que viajam à procura de algo melhor, e o peso que têm de carregar por não estarem na sua terra. 

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Carlos Matos

Levantou-se rápido demais e viu tudo negro. Respirou fundo tentando manter o equilíbrio. Quando voltou a ver, caminhou em direcção a um pequeno supermercado perto, onde comprou uma garrafa de vinho. Era o mínimo que podia levar a Charlotte. Afinal, tinha tido a amabilidade de lhe oferecer um lugar para dormir sem sequer a conhecer. Às 7 horas, tocou à campainha. O porteiro veio abrir-lhe a porta e pediu para esperar no hall do condomínio, enquanto avisava Charlotte de que tinha uma visita. Charlotte autorizou que subisse. O porteiro sorriu e carregou no 13.º andar. Detestava elevadores, faziam lembrar-lhe o baú. Começou a sentir o coração a acelerar, as palmas das mãos a transpirar e o peito a doer-lhe. Não conseguia respirar. Quando as portas do elevador se abriram no 13.º andar, Charlotte viu-a estendida no chão. Chamou imediatamente o porteiro, que a ajudou a carregar aquele corpo até ao apartamento. Deitaram-na no sofá.

— Pode ir, Manoj, a partir de agora eu lido com isto. Obrigada.

Charlotte foi buscar um pano com água fria e pôs-lhe por cima da testa. Conseguia-a ouvir a respirar. Quando acordou, sentiu alguém a lamber-lhe a mão, e abriu os olhos lentamente. Viu um pequeno Jack Russell e, ao fundo na cozinha, uma mulher alta, negra, de cabelo solto encaracolado, vestida com um robe de cetim, a cozinhar. Cheirava a caril. O pequeno Jimmy ladrou! Charlotte virou-se para trás.

— Finalmente! Pensei que ia ter de chamar uma ambulância.
— O que aconteceu?
— Provavelmente desmaiou. Encontrei-a no chão do elevador.
— Sim… Lembro-me de começar a ver tudo escuro…
— Não se preocupe, está tudo bem. Vamos jantar?

Charlotte tinha preparado um caril de gambas com arroz jasmim. Abriram a garrafa de vinho que tinha sobrevivido à queda, Charlotte serviu dois copos e propôs um brinde.

— À verdade!

No final do jantar, limparam a mesa redonda e Charlotte foi buscar os papéis do arquivo, pousando-os suavemente na mesa.

— Vamos a isso?


A AUTORA: Mariana Crisóstomo
Também conhecida por Junkhead Creative, é uma ilustradora portuguesa que vive e trabalha entre Porto e Brighton. Nasceu em Braga, viveu em Miramar a maior parte da sua vida, criando raízes em Espinho. Estudou Som e Imagem no Porto e mudou-se para Londres durante três anos para fazer o mestrado em Design de Comunicação: Ilustração, na Universidade de Kingston. No final da sua jornada por terras de Sua Majestade, viajou durante seis meses pelo mundo, do Nepal à Nova Zelândia. Voltou para Portugal onde continuou à procura do seu espaço como artista. É autora da série “Portuguese Sayings That Make Absolutely No Sense” e, além de ilustradora, adora cinema, escrever e tocar guitarra. Já mudou de casa mais de dez vezes, mas é perto de águas largas que se sente em casa: “Não há nada como o peixinho do nosso mar!”, garante.

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