Cuidar dos edifícios em vez de construir novos é chave para cortar emissões de CO2

A cada cinco dias constroem-se tantos edifícios como os que existem na cidade de Paris. O sector da construção representa 37% das emissões de carbono. Aqui ficam pistas para descarbonizar.

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Edifícios com menos de 12 andares poderiam usar estruturas fabricadas em biomateriais Daniel Rocha
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Hoje, o sector da construção civil representa pelo menos 37% das emissões de gases com efeito de estufa a nível mundial. Mas, até agora, só recebeu uma pequena fracção do investimento climático – a maior parte do progresso tem acontecido na redução das emissões provenientes do aquecimento, iluminação e ar condicionado. Um relatório lançado nesta terça-feira pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA) lança um programa com três passos para que seja possível alcançar a neutralidade carbónica no sector até 2060.

“Os principais culpados são o betão e o aço. Mas devemos reconhecer a interdependência de vários sectores para as emissões de carbono ao longo do ciclo de vida dos materiais de construção”, avançou numa conferência de imprensa online Anna Dyson, directora do Centro Yale para Ecossistemas + Arquitectura (Yale CEA, na sigla em inglês), um dos parceiros do PNUA na elaboração do relatório Materiais de Construção e Clima: Construindo um Novo Futuro. O outro foi a Aliança Global para Edifícios e Construção (GlobalABC).

O documento apresenta medidas que têm como alvo a redução do carbono incorporado. Esta expressão é usada nas indústrias de construção para referir a quantidade de dióxido de carbono (CO2) que é emitida por um material ao longo do seu ciclo de vida, incluindo a extracção, produção, manutenção, restauro e descarte (demolição, incineração, aterro, por exemplo). São um mapa para tentar chegar “a 2050 com neutralidade carbónica no sector da construção”, afirmou Anna Dyson.

A neutralidade carbónica consiste na redução de emissões de gases com efeito de estufa para que o balanço entre as emissões e as remoções da atmosfera (através da floresta, por exemplo) seja nulo. A meta que muitos países, entre os quais Portugal, têm para o alcançar é 2050.

Evitar, mudar e melhorar

Para alcançar a meta da neutralidade carbónica em 2050 no sector da construção, os Governos têm de elaborar novas políticas, nova legislação e incentivos económicos para ajudar a mudar as práticas da indústria, salientam os especialistas. Mas o sector da construção civil tem de mudar a forma como trabalha, orientando-se por três palavras-chave: evitar, mudar e melhorar, diz o relatório.

Evitar criar resíduos investindo numa abordagem circular (de reciclagem e reaproveitamento), construindo menos porque são restaurados edifícios já existentes e eventualmente usados para novos fins. Promover a construção com menos materiais ou com uma menor pegada carbónica, que facilitem a reutilização ou reciclagem.

Agir assim, em vez de apostar sempre em nova construção, com novos materiais, e construir menos e reciclar mais, é algo que pode reduzir em 50% a 75% as emissões de gases com efeito de estufa. Afinal, segundo o documento, todos os cinco dias o mundo acrescenta novos edifícios numa quantidade equivalente a uma cidade de Paris.

A fase de planeamento dos edifícios é particularmente importante, destacou Naomi Keena, professora na Escola de Arquitectura da Universidade McGill, no Canadá. “Se pensarmos mesmo em construir algo novo, o melhor é evitar materiais não recicláveis, cuja extracção tenha uma grande intensidade de carbono”, salienta. E dar preferência a uma construção modular, para que sejam fáceis de desmontar, se for necessário, evitando os maiores impactos de uma demolição.

A segunda orientação é mudar cada vez mais para biomateriais de fontes sustentáveis e éticas, incluindo madeira, bambu e biomassa. Em algumas regiões, seria possível reduzir até 40% as emissões do sector da construção até 2050, se acompanhada de políticas de gestão e regeneração florestal.

Mas nem tudo é simples; estima-se que entre 10% a 30% da madeira comercializada em todo o mundo seja recolhida de forma ilegal, e no que toca às madeiras de florestas tropicais, pode ser 90%. E julga-se que pelo menos metade do sector da madeira ilegal, que valerá 100 mil milhões de dólares, depende de trabalho forçado, dizem os especialistas.

A madeira pode ser usada para substituir o aço e o betão nas construções, disse Mae-Ling Lokko, da Yale CEA. Materiais que avançaram nos últimos anos, como a madeira lamelada colada cruzada (painéis CLT), que se baseia na colagem de várias camadas de tábuas (lamelas) de madeira, oferecem uma resistência suficiente para edifícios de algum porte. Segundo o relatório, muitos edifícios com menos de 12 andares poderiam usar estruturas fabricadas em biomateriais, à excepção das fundações e do poço dos elevadores.

E seriam resistentes ao fogo? “Há substanciais barreiras sociais e culturais, e uma delas é a resistência ao fogo”, reconheceu Mae-Ling Lokko, em resposta a uma pergunta do Azul. “Mas há novas tecnologias para reduzir esses problemas, criando barreiras ao fogo por todo o edifício”, assegurou.

Mas os investigadores sublinham que é necessário haver mais financiamento e apoio estatal para que se generalize a adopção de biomateriais de construção. Por exemplo, os materiais lignocelulósicos (que têm lignina e celulose na sua composição), resíduos florestais, podem ser usados como biomassa para construção. “Há uma oferta que cresce rapidamente, mas enfrenta problemas de aceitação no mercado”, disse Mae-Ling Lokko.

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Hoje o sector da construção civil representa pelo menos 37% das emissões de gases com efeito de estufa China Daily/REUTERS

A palha, por exemplo, pode ser um material de construção que ajuda a isolar termicamente os edifícios, reduzindo essa pegada carbónica. Casas com palha têm uma pegada entre 20 e 1000 quilos de CO2 por metro quadrado, em comparação com mais de 600 quilos de CO2 por metro quadrado na construção convencional, diz um estudo citado no relatório.

Outra possibilidade é a utilização em larga escala de vegetação nos edifícios, cobrindo telhados, paredes. “Cada vez mais municípios reconhecem que integrar vegetação tem impactos positivos: reduz o efeito de ilha de calor urbano, reduz as necessidades de aquecimento e ar condicionado”, salientou na conferência de imprensa a arquitecta Christina Ciardullo, co-fundadora da empresa SEArch+, e investigadora no Yale CEA.

Repensar cidades

O terceiro pólo da estratégia apresentada neste relatório com propostas para diminuir as emissões de CO2 do sector da construção civil assenta em melhorar a descarbonização dos materiais convencionais que não podem ser substituídos. Isto diz respeito sobretudo ao cimento, aço, alumínio, bem como vidro e tijolos.

A produção de aço, usado no betão armado, representa 7% das emissões de gases com efeito de estufa. “Precisamos de descarbonizar, e para isso precisamos de uma mudança tecnológica, ao nível da produção”, sublinhou Barbara Reck, da Yale CEA, na conferência de imprensa online. É preciso deixar o carvão para trás, e usar energias renováveis e hidrogénio, disse.

Olhando para estas recomendações, fica-se com a sensação de que o que está a ser recomendado é uma mudança de paradigma na forma como construímos as nossas cidades. “As nossas cidades globais estão construídas e assim continuarão. Mas os edifícios precisam de ser renovados e reutilizados, não precisamos sempre de macroestruturas de cimento e aço”, afirmou Anna Dyson, em resposta a uma pergunta do Azul.

“Mas é uma oportunidade é repensar a forma como construímos as cidades, que impacto têm sobre a biodiversidade e quanta energia usam. Podemos reconstruir as cidades para que se tornem sistemas baseados na natureza”, salientou a especialista em Arquitectura e Ambiente.