O comboio de Kim entrou na Rússia e não se sabe o que leva na bagagem
EUA acreditam que Pyongyang se prepara para fornecer armas a Moscovo, que desmente e admite enviar ajuda humanitária ao país vizinho. No centro da visita poderá estar uma mensagem à Coreia do Sul.
Foi num comboio altamente blindado, composto por umas 90 carruagens e que não se desloca a mais de 50 quilómetros/hora, onde supostamente as refeições incluem vinhos franceses de luxo e iguarias de várias cozinhas internacionais, que Kim Jong-un chegou a território russo para um encontro com Vladimir Putin.
Em Khasan, uma estação ferroviária na fronteira entre a Coreia do Norte e a Rússia, junto à costa do Pacífico, o líder norte-coreano tinha à espera o ministro do Ambiente russo, o governador da região e uma fanfarra militar. No seu Telegram, citado pela agência noticiosa Tass, o ministro sublinhou a Kim que os dois países têm boas relações há 75 anos. “Todos estes anos temo-nos apoiado e ajudado mutuamente, não apenas como vizinhos, mas também como parceiros próximos”, escreveu Alexander Kozlov.
Este primeiro encontro entre Kim e um responsável político russo não foi apenas de cortesia, de acordo com o governador da região de Primorski, Oleg Kojemiako, segundo o qual foram discutidos eventuais projectos agrícolas e turísticos comuns.
O filet mignon da visita de Kim estará reservado, no entanto, para o encontro com o homólogo russo, cujas data e localização permanecem um mistério. Os analistas ocidentais especulam que o comboio norte-coreano não se dirige para Vladivostok, onde Putin esteve nesta terça-feira, e que é provável que a reunião entre ambos decorra no cosmódromo de Vostochni, uns 2000 quilómetros mais a norte. O Presidente russo, de resto, confirmou que vai estar naquele local nesta quarta-feira.
O porta-voz do Kremlin sublinhou a importância da visita, mas não entrou em detalhes sobre o que vai estar na agenda. “Haverá negociações entre as duas delegações e, depois disso, se necessário, os líderes continuarão a sua comunicação num formato cara a cara”, disse Dmitri Peskov, adiantando apenas que em cima da mesa estarão “as relações bilaterais, a situação na região e na arena global”.
O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Andrei Rudenko, admitiu à Tass que um dos pontos a discutir poderá ser o fornecimento de ajuda humanitária à Coreia do Norte, um dos países mais isolados do mundo e sujeito a fortes sanções internacionais devido ao seu programa nuclear.
Em Washington, desconfia-se de que a moeda de troca dessa ajuda seja o envio de armas e munições para a Rússia usar na Ucrânia. O porta-voz da Casa Branca para a segurança nacional, John Kirby, assegurou que as negociações entre Moscovo e Pyongyang “estão a avançar” e que a recente visita à capital norte-coreana de Serguei Shoigu, ministro da Defesa russo, serviu para tentar “convencer Pyongyang a vender munições de artilharia”.
Para que tal aconteça, alguns analistas acreditam que é provável que a Coreia do Norte queira ter acesso a tecnologia que lhe permita desenvolver a sua frota de submarinos nucleares e satélites. E, acrescenta o correspondente da BBC em Moscovo, Steve Ronseberg, na imprensa russa corre já a ideia de a Rússia deixar de apoiar as resoluções do Conselho de Segurança da ONU que sancionam o programa nuclear norte-coreano – e que impedem as transacções de armamento com Pyongyang.
A este propósito, a presidência da Coreia do Sul emitiu um comunicado na terça-feira em que pede à Rússia que “aja responsavelmente enquanto membro permanente do Conselho de Segurança”. O governo de Yoon Suk-yeol garantiu que está a monitorizar atentamente a deslocação de Kim e admite “alguma preocupação por várias razões”.
Peskov desvalorizou as declarações americanas. “Como sabem, na implementação das relações com os nossos vizinhos, incluindo a Coreia do Norte, são os interesses dos nossos dois países que importam, não são os avisos de Washington”, disse o porta-voz de Putin.
Sublinhando o “simbolismo” da visita, que é a primeira deslocação de Kim ao estrangeiro desde a eclosão da pandemia, em 2020, o analista francês Antoine Bondaz disse ao Le Monde que não acredita que a Coreia do Norte venha a fornecer armas à Rússia. Por um lado, “a indústria de Defesa norte-coreana em matéria de armamento convencional está a passar por grandes dificuldades” e, por outro, os riscos políticos para a Rússia são consideráveis, sustenta o investigador de Sciences Po. “Se, em teoria, as entregas de armas norte-coreanas permitissem travar a contra-ofensiva ucraniana e obrigar Kiev a renunciar definitivamente aos territórios ocupados, o risco talvez valesse a pena, mas nada indica isso neste momento.”
Bondaz diz mesmo que a reaproximação de Moscovo a Pyongyang pode não passar de uma encenação, uma forma de “enviar uma mensagem ao Ocidente, sobretudo à Coreia do Sul”, que se tornou um dos principais fornecedores de armas aos países da NATO, nomeadamente à Polónia, um dos principais aliados da Ucrânia.