O Caso do Cadáver Esquisito 12: “A realidade dos sonhos”, por Anthony Aalto

O 12.º episódio da “novela” escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que dá muitas voltas ao mundo. Aqui, aterramos em Londres com uma misteriosa polaroid e vamos directos ao Home Office.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr
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À sua chegada, Londres desfez-se das suas habituais nuvens sombrias. Deixou a mala, com a sua preciosa caixa de madeira, num cacifo da estação de Paddington e saiu para o canto dos pássaros e um sol brilhante. Que se lixe o metro! Um dos prazeres da vida era andar de táxi preto pelo coração desta cidade.

— Home Office, via Mall, por favor.
— O seu desejo é uma ordem!

Será que ela disse mesmo que este era um país sem memórias? Quis dizer, claro, nenhuma lembrança da sua juventude, da terra (de um solo queimado e tão limpo quanto o sopé acastanhado de sua amada serra da Estrela). Nenhuma lembrança, apenas alguns ramos enegrecidos a sugerir o que havia acontecido antes.

Mas Londres? Oh, ela tinha estado aqui muitas vezes antes, e enquanto o táxi navegava pela Park Lane, não pôde deixar de se lembrar do seu caso com Paul, no Hilton — na época em que o Hilton estava na moda e o Hard Rock Café, ao lado, era frequentado por roqueiros a valer. Paul estava lá para escrever um artigo para um jornal estudantil. “Tão fofo. Tão tímido”, murmurou para si mesma com um sorriso. Levou-o para a cama e passaram juntos um fim-de-semana mágico. Mas já sabia que tinha que desaparecer — a primeira de inúmeras mudanças de identidade e endereço para esconder o facto de ela não ser como qualquer outra pessoa, de ser uma aberração, de o seu corpo ter parado de envelhecer. Quantos anos tem o Paul agora?, interrogou-se. Setenta? Suspirou tristemente.

Passando pelo Palácio de Buckingham, descendo o Mall até Trafalgar Square, passando por Whitehall, o táxi deixou-a no número 2 da Marsham Street, vasto quartel-general do aparato da segurança interna britânica.

A sua escolta estava à espera. Charlotte Andrews, analista de dados, uma funcionária superior, negra, bonita, com um sotaque britânico da classe alta, conduziu-a rapidamente pelos controlos de segurança até uma sala de leitura silenciosa cheia de ecrãs de computador brilhantes.

Sentaram-se à frente de um teclado e ela explicou. Não tudo. Não estava a investigar a sua própria história, nem sequer o único vestígio do seu passado — o de antes de acordar do coma no sanatório privado perto de Castelo Branco: uma velha foto polaroid a preto e branco dela sentada no colo de um homem de aspecto severo atrás de uma enorme secretária brilhante. Quem era ele? Em que ano foi a foto tirada?

— Provavelmente antes de 1963, foi quando mudaram para os rolos coloridos — dissera-lhe o velhote da oficina de máquinas fotográficas da Rua do Loreto, em Lisboa.

No início deste ano, a Interpol lançou um novo software de reconhecimento facial. Não explicou por que capricho cortara o rosto do homem de uma fotocópia da polaroid e introduzira no sistema.

Também não explicou o seu choque quando a máquina de fax cuspiu três fotos. Duas inquestionavelmente do mesmo homem em cujo colo ela se sentara décadas atrás. O par tinha sido preso em Outubro passado, mas o homem não parecia um dia mais velho do que na polaroid. A outra foto ainda era mais surpreendente. Era como olhar para um espelho. Excepto pela cicatriz na testa, poderiam ser gémeos. Aquela mulher tinha que ser sua mãe. Estes tinham que ser seus pais.

Lia-se numa nota de arquivo que tinham sido tiradas amostras de ADN. Foi isso que a motivou a pedir uma cópia de seu próprio ADN usando um nome falso.
— Preciso de saber se a amostra de ADN que está nessa pen com impressões digitais dos polegares estabelece algum vínculo com eles — disse, apontando para o ecrã.

— Sem problemas — os dedos elegantes de Charlotte tamborilaram o teclado —Não deve demorar mais de cinco minutos, vamos ver.
Foi mais rápido do que o previsto.

— Vamos ver — Charlotte passou a sua longa unha pintada ao longo do ecrã — Está com sorte. De facto, são parentes muito próximos. Um irmão ou, mais provavelmente, um filho. Oh meu Deus, todas as três amostras têm a mesma anomalia genética não identificada. Espere, espere, é interessante: o arquivo está marcado como top secret, mas essa classificação foi levantada ontem. O caso foi encerrado meses atrás, mas o seu ADN nunca foi apagado do computador. Há qualquer coisa que não me está a contar, não é?

A sua cabeça andava às voltas. Essas pessoas poderiam ter a chave para o mistério da sua vida, da sua memória vazia, da sua ausência de idade, dos seus cruéis desejos de sangue suprimidos apenas por pesadelos a ser perseguida por um fantasma e trancada num baú de madeira? Esforçou-se para manter a calma.

— Talvez. Mas antes disso, há alguma hipótese de eu ver o arquivo completo do caso? — colocou a mão no braço de Charlotte — Eu sei que o meu pedido é fora do vulgar, mas tenho de lhe pedir para confiar em mim.

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Carlos Matos

Charlotte olhou-a nos olhos.

— OK, mas vou ter que falar com a Scotland Yard. Por que não sai para almoçar? Envio-lhe uma mensagem assim que tiver alguma coisa. Tem algum sítio para ficar se tiver que esperar durante a noite?

Charlotte estava só a ser simpática? Ela adoraria passar a noite, mas não ousaria arriscar voltar amanhã ao Home Office. O seu disfarce podia ter sido descoberto entretanto. A informação que ela perseguia em vão durante décadas estava de repente ao seu alcance? Não podia ser uma coincidência. Alguém estava a tentar expô-la.

— O meu chefe não autorizou a pernoita; preciso realmente disso hoje.

— Vou ver o que posso fazer — Charlotte sorriu ao sair.

Precisava de ar. Saiu do prédio e foi até o rio. O Tamisa corria rápido, plano e castanho. Entrou nos Victoria Gardens e sentou-se num banco. O Big Ben começou a tocar a sua famosa melodia. Ao som do primeiro “dong”, de repente, ela estava de volta: presa no baú de madeira, um corte sangrento na cabeça, os braços cruzados como se estivesse morta. E o lojista do seu pesadelo? Ele agora parecia muito mais jovem, parecia, de facto, o homem da polaroid.

E pela primeira vez ouviu na sua cabeça aquelas palavras que lhe fugiram durante décadas. “A nossa espécie não morre.”


O AUTOR: Anthony Aalto
Filho bastardo de um judeu ucraniano que combateu pela independência do seu país e contra os bolcheviques, antes de fugir para Paris em 1921, onde se casou com Anne, uma inglesa 33 anos mais nova de quem teve três filhos, entre os quais ele. Fugindo ao avanço de Hitler pela Europa, refugiou-se em Londres e ofereceu-se para saltar de pára-quedas em França para espiar os alemães. Em 1966, a sua mãe casou-se com um maiorquino da pequena nobreza e foram morar para o topo de uma colina com uma vista deslumbrante sobre o Mediterrâneo, mas sem água municipal, esgoto, telefone e TV. O seu padrasto era antifranquista, lutou contra o desenvolvimento do turismo de massas e corajosamente concorreu às eleições contra os falangistas, nas últimas eleições com o carimbo de Franco. Cresceu assim como ambientalista e politicamente empenhado, foi presidente do sindicato dos seus colegas universitários e líder de um grupo de ocupantes de casas vagas em Londres. Londrino, primeiro detestou e depois amou Maiorca. Terminou o curso, foi para a América Central e tornou-se correspondente do “The Guardian”, da BBC e depois do “Expresso”, com o nome de Tony Jenkins. Em 1986, foi primeiro repórter ocidental a chegar a Armero, onde 25 000 pessoas morreram na lama escaldante da erupção do Nevado del Ruiz. Testemunhou a morte lenta de uma linda garota de 13 anos chamada Omayra Sanchez, cujas pernas ficaram presas na lama por pedras gigantes. Escapou à morte em três países diferentes no espaço de três meses. As três pessoas com quem dividia uma casa na Nicarágua foram todas mortas em diferentes incidentes em questão de semanas. Mudou-se para Nova Iorque para recuperar do stress pós-traumático e pouco depois tornou-se correspondente do “Expresso” nos Estados Unidos, cargo que desempenharia nos 15 anos seguintes. Nessa qualidade, fez reportagens em países tão distantes como Japão, Indonésia, México, Roménia, Libéria e muitos outros. Mudou-se para o Havai onde começou a fazer documentários sobre questões locais urgentes — falta de habitação, mudança climática etc. Actualmente trabalha num filme sobre a reforma da justiça criminal. Desempenha funções no conselho de administração da nova rede ferroviária do estado, que tem um custo de 10 000 milhões de euros. É a ferrovia suburbana mais avançada do mundo, inaugurada em 30 de Junho de 2023.

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