O morto convencido-da-vida persegue-a. Ela vê-o com a nitidez do final dos dias escuros. Ou será apenas a sua sombra? Os 2,8 quilómetros da Avenida Almirante Reis parecem não ter fim.
Numa tentativa desesperada de despistar o fantasma, a mulher entra numa loja de antiguidades a abarrotar de móveis, quinquilharias e outras inutilidades preciosas. Cambaleante, tropeça no fio de um candeeiro de pé empoeirado e bate com a cabeça no piano de cauda em exibição no centro da sala, que solta notas em dó maior.
Atrás do balcão, o dono da loja segue imóvel o seu trajecto. Quando finalmente a alcança, ela estremece no chão, pupilas dilatadas, um fio de sangue de um vermelho azul a escorrer-lhe pelo rosto. Aproxima-lhe da cara o espelho de mão vintage vitoriano, todo em prata, uma relíquia que achou no eBay e que acabara de desempacotar. Será que respira?
O corpo inerte tenta em vão recuperar o controlo. Quer articular algumas palavras, mas os lábios não obedecem, não sai um som. Uma luz cada vez mais intensa apodera-se dela. O dono da loja baixa-lhe gentilmente as pálpebras, endireita-a no chão, cruza-lhe os braços em cima do peito e embrulha-a numa bonita cambraia de linho branca, bordada nas extremidades, e coloca-a dentro de um baú de madeira do século XVII, marcado na etiqueta a 2500 euros. Fecha a tampa e roda a chave.
Falta-lhe o ar. Quer gritar, pedir ajuda, agarrar-se a alguma coisa que faça estacar a queda. O relógio de parede vienense em nogueira esculpida, mostrador circular em porcelana, algarismos romanos e ponteiros originais, dá um ar da sua graça e faz soar o tempo: uma, duas, três, quatro, cinco badaladas estrondosas ecoam pela loja.
O alarme do telemóvel toca “Viva La Vida”, dos Coldplay. O despertador está programado para um quarto para as cinco da manhã. Estremunhada, a jovem mulher levanta o braço na direcção da mesinha de cabeceira e, num gesto automático, desliza o dedo indicador sobre o mostrador para mais uns minutos de sono. Mas já não prega olho.
Com ligeiras variações, o pesadelo é recorrente e acontece sempre na véspera das viagens de avião. Recorda-se de tudo, a quianda, o fantasma, a perseguição, a chuva, a loja de antiguidades, o baú. Só não consegue lembrar-se das palavras que não lhe saem da cabeça. Palavra de honra que gostava de saber o significado.
Encharcada em suor salta da cama e enfia-se no duche. Prefere viajar de madrugada e chegar cedo ao destino, ganhar um dia inteiro à sua frente. E, neste caso em particular, inteiro não é de mais. Tem apenas algumas horas para passar revista à Base Nacional de Dados de ADN do Reino Unido, a maior do mundo: dez milhões de amostras, o equivalente à informação genética de toda a população portuguesa. Para já, esta é a sua melhor hipótese. Desde que ninguém descubra o verdadeiro interesse da visita — afinal, sempre tentaram ocultar a realidade que agora quer pôr a nu.
Duas horas e quarenta minutos de voo entre Lisboa e Heathrow e o regresso a um país do qual restam mais fotografias do que memórias. Quatro fotografias, para ser exacta, três descobertas muito recentemente graças a uma inesperada coincidência e às maravilhas da tecnologia. Aquelas são as suas pessoas. Só podem ser.
De repente, um sobressalto. “E a caixa?” Não pode esquecer-se da caixa. Guarda-a na mala de viagem a contragosto — é-lhe demasiado querida para viajar no porão, mas de outra maneira nunca conseguiria passar nos controlos de segurança. Ainda se lembra do dia em que quase teve de a deixar para trás; suplicou a todos os deuses e mais ainda ao polícia que a inspeccionou. Ainda está para perceber como é que a caixa fez disparar o detector de metais. Não vai voltar a correr esse risco.
Tudo pronto? Espreita pela janela e lá fora um carro aguarda-a. É agora. Londres espera-a e, com sorte, depois desta viagem nada será como dantes. Irão reconhecê-la? É pouco provável, mas ainda assim tem medo de ser traída pelo sotaque. E se for desmascarada, pergunta em voz alta enquanto bate a porta do Uber, depois de depositar a Samsonite no porta-bagagens. “É dji madrugada, sim, mais esse é meu últchimo giro da noitchi”, responde o motorista brasileiro, convencido de que é com ele que ela fala. Mas o pensamento da mulher já está longe e, enquanto o carro arranca em direcção ao aeroporto, ela trauteia nas nuvens: “I used to rule the world...”
A AUTORA: Isabel Tavares
A terra tremeu com força durante quatro minutos, naquela madrugada de 1969. Treze pessoas morreram, 11 de susto. Depois de correr para a rua em pijama com mulher e filhos, a mais pequena com apenas dois meses, o pai jurou que nunca mais. Já não conheceu a casa da Rua Vítor Hugo, em Lisboa, e quando nasceu, no final desse ano, mudaram-se para Caxias, onde cresceu a ouvir a mesma piada sempre que dizia onde morava: “Dentro ou fora?” A família diz que fugiu da zona sísmica, mas nunca escapou ao terramoto. Vive a maior parte do tempo em hipérbole, talvez um 7,9 na escala de Richter — mas também assusta mais do que mata. Ainda muito miúda, lembra-se de os pais receberem em casa um amigo cego — Carlos, é este o nome que recorda. Todos os anos a mãe lhe preparava um cabaz de Natal, enquanto na sala de estar o pai e ele conversavam. Um dia, apareceu de mansinho, curiosa. “Ó Doão, potho?”, perguntou o Carlos, sopinha de massa. E, com as mãos, tacteou o seu rosto e sentenciou: “Esta tua filha vai ser jornalista.” Gosta muitíssimo do que faz e tem a sorte de ser paga por isso. Também escreveu um livro, uma biografia, “Ramalho Eanes, O Último General”, que dedicou aos três filhos, Madalena, Francisco e Manuel — por esta ordem, os dois últimos com apenas dois minutos de diferença. E vem outro a caminho — livro, não filho.