Desde Julho de 2020 que a população de orcas que existe na Península Ibérica se tornou notícia regular devido às interacções com veleiros, que têm assustado as pessoas que estão a navegar no mar. Por causa desta situação, Rui Alves decidiu criar um portal chamado orcas.pt, para ajudar a informar quem se quer aventurar nas costas portuguesa e espanhola.
“Acompanho o que se passa com a vela como desporto mas também como actividade. E vi o problema que havia com as orcas em Portugal”, diz ao PÚBLICO o engenheiro, que iniciou o site em Outubro de 2022. “A ideia era a de criar um grupo de conversação entre pessoas, partilhar a informação e tentar descobrir quais são as soluções. Foi assim que tudo começou, com um grupo pequeno no WhatsApp.”
Neste momento, o orcas.pt já tem uma comunidade de 1800 membros que usam a plataforma e o grupo daquela rede social. Quem entra no orcas.pt dá de caras com um mapa da Península Ibérica no qual estão assinalados tanto os avistamentos de orcas, como as mais raras interacções que têm tido com os veleiros – quando um destes mamíferos marinhos resolve ir de encontro ao leme de um veleiro, insistentemente, podendo provocar danos na embarcação.
Embora estas situações possam ser tensas e assustadoras para quem esteja nos veleiros – há casos de embarcações que acabaram por se afundar –, o comportamento das orcas não é interpretado pelos especialistas como sendo um ataque ao barco. “Um ataque envolve sempre violência e acontece em resposta a um estímulo externo, pode ser uma reacção para se defender a um estímulo externo”, explica ao PÚBLICO Marina Sequeira, bióloga no Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e especialista em cetáceos, grupo de mamíferos marinhos que agrega os golfinhos e as baleias.
Neste caso, o que os biólogos têm observado é uma interacção com o leme dos veleiros. “Aqui não houve nada, o leme não fez nada. Os animais estão a interagir com uma peça móvel do veleiro. Os animais continuam a brincar com o leme quando este foi partido e separado do veleiro”, relata Marina Sequeira. “É óbvio que este tipo de interacção causa um estrago no veleiro.”
A bióloga faz parte do Grupo de Trabalho Orca Atlântica (GTOA), que integra especialistas espanhóis e portugueses que logo em 2020 se aperceberam do problema que estava a surgir e decidiram juntar esforços para tentar dar uma resposta à situação. “Acredito que possa ser uma coisa muito assustadora para quem está a bordo, mas nunca presenciei uma interacção”, adianta.
População ameaçada
De início de Junho até 6 de Setembro, houve 72 interacções de orcas com embarcações, de acordo com os dados disponibilizados ao PÚBLICO por Rui Alves. Embora na maioria das vezes os veleiros sejam o alvo, há casos esporádicos de encontros com barcos de pesca e embarcações marítimo-turísticas. Sendo o quarto ano sucessivo em que estes fenómenos ocorrem, há uma preocupação por parte de biólogos e conservacionistas de que se possa desenvolver uma resposta punitiva em relação aos mamíferos.
“Preocupa-nos que os erros factuais relacionados com estas interacções estejam a ser repetidos nos meios de comunicação social, juntamente com uma narrativa - sem base científica ou real - de que os animais estão a atacar agressivamente as embarcações ou a procurar vingança contra os marinheiros”, lê-se numa carta aberta de Agosto, assinada por mais de 30 biólogos de todo o mundo, incluindo Marina Sequeira. “Acreditamos que esta narrativa projecta inadequadamente motivações humanas nestes cetáceos e preocupa-nos que a sua perpetuação conduza a respostas punitivas por parte dos marinheiros ou do público em geral.”
Marina Sequeira refere que há velejadores com petardos a bordo e que os usam contra as orcas. Os petardos podem ferir os animais e causar surdez, uma situação particularmente grave para estes cetáceos, dependentes do sistema auditivo para identificar a posição de objectos no mar através do som - a ecolocalização. “Como consequência das interacções, poderá estar a surgir a ameaça por parte de alguns velejadores em relação às orcas”, diz a bióloga, o que pode ser um problema para a sobrevivência daquela população.
A Orcinus orca, nome científico deste animal, pertence à família dos golfinhos. É a maior espécie daquela família, podendo atingir oito metros de comprimento no caso dos machos e sete metros no caso das fêmeas.
As orcas são predadoras de topo, o grupo que vive ao largo da costa da Península Ibérica alimenta-se de atum e acompanha a migração daqueles peixes. A partir de Abril, as orcas descem pela costa peninsular e vão até ao estreito de Gibraltar em perseguição dos atuns. A partir de Setembro, começam a voltar para Norte, podendo permanecer o Inverno a norte da Galiza, no golfo da Biscaia.
Embora existam populações de orcas nos vários oceanos do mundo, esta população não parece reproduzir-se com outras. “Do ponto de vista genético, é considerada uma subpopulação que geneticamente está separada de populações do Norte da Europa”, explica a bióloga. Entre juvenis e adultos, existem apenas cerca de 40 indivíduos. Os adultos reprodutores serão ainda menos, menos de três dezenas. “É muito pouco”, afirma Marina Sequeira, explicando que esta é uma razão para que o ICNF tenha designado esta subpopulação como estando criticamente em perigo de extinção.
Comportamento adequado ao risco
Nesse sentido, o objectivo dos biólogos e conservacionistas é evitar ao máximo interacções entre veleiros e orcas, tanto para que as pessoas não corram riscos desnecessários, como para a situação não se agudizar. Recentemente, Portugal proibiu as embarcações de se aproximarem de grupos de orcas. O site do GTOA tem um mapa que não é oficial mas funciona como recomendação, onde se sinaliza o risco de encontros com orcas ao longo da costa da Península Ibérica.
Estes avisos exigem uma actualização, de acordo com a informação que se vai obtendo sobre avistamentos e interacções com orcas. Por um lado, as orcas vão estando em regiões diferentes ao longo do tempo. Por outro, é uma minoria dos indivíduos que interage com os veleiros. “Até à data, foram identificados pelo menos 11 juvenis e quatro fêmeas adultas que participam activamente ou se limitam a observar as interacções”, lê-se na carta aberta.
Para Francisco Martinho, biólogo marinho e especialista em golfinhos e baleias, as orcas que de facto interagem com as embarcações deverão ser apenas quatro juvenis, o resto dos animais parece estar a assistir àquilo que os biólogos dizem poder ser para as orcas uma actividade lúdica.
“A partir dos vídeos, temos imensa dificuldade em saber quais são os indivíduos que interagem com as embarcações”, diz ao PÚBLICO o biólogo, que é especialista a identificar cetáceos a partir de imagens e também faz parte do GTOA. É necessário ter filmagens de dentro de água para se identificar os animais que estão de facto em acção. É através da forma das manchas brancas que aqueles animais têm junto aos olhos que se conhece cada indivíduo.
“O problema não está nas orcas”, diz o biólogo, recordando que o mar “é a casa delas”. E pede aos velejadores que, antes de pensarem em sair para o mar, olhem activamente para os mapas que o GTOA disponibiliza, tendo em conta a informação mais recente sobre o paradeiro das orcas, e se comportem de acordo com o risco existente na região onde estão.
“Se o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) disser que há um temporal, o velejador fica dentro do porto e não sai. Isto tem de ser visto como um temporal”, acrescenta o biólogo, que até há poucos anos também velejava. Outra forma de reduzir as hipóteses de um encontro com orcas é navegar junto à costa, já que é raro os grupos de orcas nadarem em regiões com profundidades inferiores a 20 metros.
Uma comunidade em cuidado
Mas a gestão deste tipo de expectativas e tensões pode ser difícil para quem quer ir passear para o mar. “Há pessoas que ficam frustradas, que querem sair com o barco e não têm muitas alternativas. As pessoas estão mais preocupadas, ficam em pânico, sentem uma impotência muito grande”, relata Rui Alves, que diariamente gasta entre seis e oito horas a alimentar o site e está em contacto com os participantes da comunidade, que, além de ter muitos velejadores, conta também com investigadores como o próprio Francisco Martinho.
Sempre que há uma nova interacção entre uma embarcação e uma ou mais orcas, há um esforço para se identificar o episódio para poder ser somado ao mapa. “Se alguém tem um aviso de que um barco foi atacado, partilha isso dentro da comunidade. Tenho de descobrir o skipper desse barco para saber o que aconteceu”, diz o engenheiro. “É uma comunidade que está a cuidar de si, que partilha a informação que tem.”
Só quem é velejador ou tem uma ligação com esta questão, como os biólogos, é que entra para a comunidade criada por Rui Alves. Se os investigadores têm uma oportunidade de estar em contacto com o que está a acontecer no mar, através dos relatos dos velejadores, estes últimos ficam com acesso aos resultados do trabalho científico. “Os cientistas são aqueles que podem prever melhor o que se vai passar, a migração que vai ocorrer, quantas orcas vamos ter e onde não estarão”, diz o engenheiro.
Neste momento, a ciência também está a tentar obter um instrumento que minimize as interacções, explica Marina Sequeira. Desenvolveram-se dois artefactos que emitem ondas sonoras que, supostamente, incomodam as orcas. “Estão prontos a serem testados para ver se resultam ou não”, diz a bióloga. “Vamos tentar introduzir no meio marinho sons que as incomodem, sem causar nenhum impacto negativo, e que as impeçam de se aproximarem dos lemes.”
A ideia é que estes instrumentos só sejam usados nas proximidades de orcas, para evitar a poluição sonora do meio marinho e o gasto excessivo de energia por parte das embarcações. Resta saber se vão funcionar ou não. Seria uma forma de atenuar um problema que, em última instância, exige uma adaptação das pessoas.
“Quando estamos no mar, estamos no domínio da vida marinha. Não devemos castigar a vida selvagem pelo facto de ser selvagem”, lê-se ainda na carta aberta. “Temos de manter a cabeça fria quando os animais selvagens exibem um comportamento novo e temos de fazer um esforço maior para adaptar as nossas próprias acções e comportamentos à presença da vida selvagem. A sobrevivência das espécies com que partilhamos este planeta depende disso.”