Chamem-me antagonista

Chorava alto quando me falavam doce e gargalhava quando ralhavam comigo. De uma forma geral, prefiro as pessoas macambúzias e zangadas.

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Megafone P3: Chamem-me antagonista Soragrit Wongsa/ Unsplash
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Sou má. Desde pequena que dizem que tenho o diabo no corpo. Sou a chamada pessoa de má rês, sou torcida, sou velhaca. Os meus pais são bons e não entendem porque saí tão defeituosa. É verdade que não gostei deles, nunca gostei. Nem mesmo quando me traziam ao colo e sentia o bafo quente cantarolando com carinho.

Sempre rejeitei mimos, contam-me que assim foi desde o berço. Chorava alto quando me falavam doce e gargalhava quando ralhavam comigo. De uma forma geral, prefiro as pessoas macambúzias e zangadas. Não de uma forma melancólica e romantizada. Prefiro os desgraçados, os desesperados. Sobretudo se tiver sido eu a causadora desse estado.

Não tenho uma explicação. Talvez tenha mesmo o diabo no corpo, como tanto dizem. Mas espreito para dentro de mim através de radiografias e não encontro nada. Será o diabo invisível como Deus? Procuro alguém dentro de mim com pés de cabra, um cornudo ou alguma figura hedionda que se responsabilize pelo mal que tanto causo. Mas só encontro os meus ossos e um vazio por dentro, em vez do suposto preenchimento do demónio.

Sou má. Tenho de admitir que o sou. Sei-o desde sempre. Confirmei-o em criança quando afoguei vários medos. Nunca gostei de ter medo. Disseram-me que o diabo não tinha medo de nada, a não ser de Deus, mas quem é que não tem medo de Deus? Eu tenho, isso não faz de mim o diabo. Se ter medo de Deus fizesse de nós o diabo, éramos todos demónios. Pensando bem, se calhar até somos.

Tenho mau feitio, não gosto de coisas alegres, prefiro desgostos acima de tudo, sobretudo se forem de outrem. Não sei de onde me vem o desejo pela contrariedade. Sou má. Sempre fui e serei. Nem todos podemos ser bons, alguém tem de fazer o papel de antagonista. Sem conflitos a narrativa da vida não teria dimensão ou volume. Chamem-me antagonista, diabo não.<_o3a_p>

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