O Caso do Cadáver Esquisito 8: “A luz escura das Kyandas”, por Conceição Branco

O oitavo episódio da “novela” escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que dá muitas voltas ao mundo. Aqui, cruza-se com Angola, estórias de Luanda, a brisa fresca do mar da Corimba...

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos Dr
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O Caso do Cadáver Esquisito: Apresentação de uma experiência surreal, misteriosa e viajada com histórias de ficção diárias na Fugas

Temos de ir no kimbanda para te limpar. Estás suja. Temos de saber quem te sujou.

Não respondes, deixas o silêncio ecoar pelo fio de telefone, negro e pesado, ainda analógico, nem bem analógico, de cabo submarino no ziguezague de ligar continentes, quem sabe se as Kyandas, aquelas que moram lá nas águas profundas, escutam as palavras a navegar nos cabos.

Não me sentia suja, nem fora, nem dentro. Soube apanhar os cacos da alma, colar em delicada filigrana de arte japonesa, o fino fio de ouro a juntar os estilhaços, uns do antigamente de outro continente, os outros do quotidiano de estranhas fronteiras, a Norte.

Olha o respeito!, havia de dizer a avó, se ouvisse aquela conversa de kimbandas e adivinhasse forças grandes das Kyandas. Não se responde torto, não se deixam cair no esquecimento as sabedorias de kimbandas, não se deslustram Kyandas, poderosas, tão difíceis de ver, viram-se de costas, põem escuridão nos olhos. Pepetela já tinha avisado: “O que se vê normalmente, porém, não são mais que sinais delas, luzes, lençóis de luz debaixo das águas, fitas, fitas de muitas coisas.”

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Carlos Matos

Fiat Lux, como?

Com voz mansa, fui perguntando, se estás aí, tão no Sul e eu atraquei no Norte, como vamos no kimbanda? Como sabes da minha sujeira?, não podes ver, o kimbanda também não…

Foste sempre assim, só tu sabes, ninguém mais sabe, até duvidas do kimbanda falar com os espíritos dos mais velhos antepassados, saber se foram ofendidos por um qualquer. Ele sabe e pode resolver a questão.

Não vale a pena dizer que estou bem, pois não? Sem sujo, nem dentro, ou fora. Se tenho, só eu sinto e sei. Às vezes pesam memórias, doem sonhos que ficaram lá, ainda sei nomes dos que morreram de morte matada. Estou aqui, é outro mundo. Aqui sabem o que sou e o que faço, não lançam olhares a dizer não és daqui, escrevo o meu nome por baixo de notícias, de todas as outras formas aprendidas de ser jornalista.

Nesse mundo estás a fazer o quê? És mulher de quem? Nem podes acender velas por aqueles que morreram de morte morrida, pelos do nosso sangue. Tens casa de pagar renda, não é o teu chão. (Olha o respeito!, não se fala alto com a mãe.) Mesmo quando ela te está a apoucar, te está a dizer que a tua vida, agora mais anos de Norte do que de Sul, não chega. Senta-te no chão, estica o fio do telefone, acende o cigarro. Deixa voltar o silêncio. Mergulha fundo, na memória.

Lembras-te da mulemba na frente da casa da Samba? Parece que estou a ver a Mais Velha que ficava sentada na raiz grossa, e nunca se soube de onde vinha nem quando chegava. Na hora do primeiro olhar não estava, depois confundiam-se as suas rugas com a casca da árvore, as pernas mirradas com as raízes mais leves, vinha então o cheiro acre do tabaco ou diamba, fumado no cachimbo.

Gostava muito da varanda grande da casa da Samba, com parede de tijolo sim, tijolo não, arquitetura de bangalô tropical, assim chamava o pai, escusava-se de falar em vivenda. Era bom sentir o vento fresco vindo do mar da Corimba, nos lugares do tijolo não. Naquele então, na frente do bangalô tropical estava só a mulemba e lá no fundo a caminho do morro, umas poucas vivendas. As geografias são terrenos flutuantes, gingando conforme a cintura de musseques, em redor de Luanda, resvalando para cada vez mais longe, com cada vez mais gente.

A Mais Velha contava estórias numa voz miúda, estórias perfumadas pelo fumo que envolvia em cores fantasma as palavras, as fazia subir em volutas leves até às folhas dos ramos altos da mulemba. E um dia disse: a morte matada deixa raiva na cabeça, a morte morrida põe pedras no coração. A longínqua fala da Mais Velha falava da mulemba, que cortaram para passar a estrada de asfalto. Talvez.

Agora tenho de te dizer como vais xinguilar. Para o kimbanda limpar, é preciso tu xinguilares. Vais arranjar velas de cera de abelha, não é de cera do petróleo, ou estearina, essas não servem. Ficas descalça, com os pés no chão. Tens quintal? O teu telefone chega no quintal? Então fica lá, na terra.

Estás a dizer para eu entrar em transe aqui, no meio da chuva de Lisboa, no quintal, sem sapatos e de velas na mão? E vou xinguilar com qual antepassado? (Olha o respeito!) Veio um silêncio de chumbo do cabo submarino guardador do fio telefónico, estavam as Kyandas de grande poder, tudo vêem e ouvem, tudo sabem de mares, marés ou tempestades escorrendo do coração para o fio do telefone, bem escondidas nas águas fundas do Atlântico. Nem com Kakalu, a festa de venerar, se iriam apaziguar aquelas Kyandas.

No tom paciente das mães a falar com os filhos (e as filhas) a quem é preciso explicar porque os filhos vão e filhas não devem, ela disse: O kimbanda é curandeiro, ele vai fazer a Umbanda, arte de curar. Não faças confusão com o Muloji, que é feiticeiro. Estas são as nossas tradições.

Não podes rir, não podes zangar, não podes magoar a mãe, embora ela te esteja a apoucar, a puxar-te lá para um mundo onde nunca estiveste, nem sabias ser, ou ter sido alguma vez, o mundo dela, a filha de marceneiro de madeiras finas, a mulher de funcionário superior da administração colonial, a jovem de estudos de liceu no colégio das madres. Era portanto a velhice, a instância do fim do tempo, que a fazia recorrer a quem lhe pudesse, de novo, devolver a filha? Como dizer-lhe, essa não sou eu?

E assim, de voz embargada, só perguntei: O kimbanda sabe destas geringonças de falar ao longe, tem telefone?


A AUTORA: Conceição Branco
Essa aí é ela: Desde sempre entre dois continentes, a que agora se diz afro-europeia, preferia ser crioula, pois, mais do que geografias, é o choque de culturas, por vezes atroador, a marcar a forma de ser e de estar. Andarilha de Luanda a Lisboa primeiro, para depois rumar ao sul quase marroquino do Algarve, talvez tivesse podido, por ser o sonho, escrever como tantos outros, contos inverosímeis, devidamente comoventes ainda que despojados. Caiu-lhe a história no colo, a guerra no seu chão sagrado, preferiu ser guerrilheira urbana de palavras a relatar factos reais, redatora nas ondas hertzianas; paixão segunda, essa de relatar realidades da forma direta, a que se chama jornalismo, transformou-se, na caminhada europeia, em forma de vida. Correspondente do espesso semanário nacional de referência, ou do jornal nacional centenário, com paragens de jornalismo de investigação, reportagens ou opinião, em revistas e outros títulos tão apetecivelmente alternativos, o estilo essencial foi informar. Obras de referência incontornável, as duas filhas, hoje cidadãs activistas de valores universais. Também plantou árvores. [A autora escreve utilizando o acordo ortográfico]

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