“Querido, mudei o SNS!”: muda a cara ou a casa?
Não podemos de modo algum desinvestir dos pacientes saudáveis: a vigilância da saúde infantil e juvenil, do adulto saudável, da grávida de baixo risco.
Depois da partilha faseada de algumas linhas orientadoras do projecto da Direcção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) desde que tomou posse, esta semana foi anunciada “a grande reforma” e revelados detalhes adicionais da generalização do modelo de Unidade Local de Saúde (ULS) a todo o país, de acordo com declarações de Fernando Araújo à agência Lusa. E já tem data marcada: janeiro de 2024.
A sensação que sobrevém faz lembrar o conhecido formato de televisão que se ocupa a remodelar divisões de casas, particularmente o momento em que o resultado das obras e a nova decoração são revelados. E o monólogo interior poderia ser mais ou menos este, estejamos a falar da sala de estar ou do SNS, ambos inequivocamente precisados de melhorias. Pensamos: “Tudo mudado e tão de repente?”. Retorquimos: “Mas não dizem todos os políticos, comentadores e opinion makers afins que o problema do SNS é estrutural e é necessária uma profunda reforma? Ei-la.” E, com efeito, de repente, aquela sala de estar datada, parece agora organizada e moderna; não há dúvida de que as sanefas estavam démodées, mas paira alguma sensação de assepsia nesta divisão — precisa, claro, das pessoas, sempre as pessoas.
Impõe-se uma visita rápida e reflexão sobre os principais pontos da generalização do modelo de integração de cuidados. 31 novas ULS juntam-se às oito já existentes, englobando todos os hospitais e agrupamentos de centros de saúde, deixando de fora apenas os três institutos portugueses de oncologia e o Hospital de Cascais (parceria público-privada). Podemos centrar esta análise em três pontos: modelo, financiamento e pessoas.
Em relação ao modelo, o modelo ULS integra-se no que conceptualmente se designa por integração vertical de cuidados, reunindo os diferentes níveis de cuidados sob uma mesma entidade e gestão. Alguns autores e estudos defendem como exemplos de vantagens deste modelo, lato sensu, a redução da utilização de cuidados hospitalares e do serviço de urgência por situações não urgentes, o encurtamento do tempo de internamento hospitalar e a diminuição da taxa de readmissão. Por outro lado, o estudo da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) de 2015, que avaliou o desempenho das ULS em termos de acesso, qualidade, eficiência e desempenho económico-financeiro, não conseguiu demonstrar, de um ponto de vista global, na realidade portuguesa, a superioridade do modelo ULS. Mais: será que o mesmo modelo serve às realidades distintas que temos em Portugal em matéria de cuidados de saúde? A Direcção Executiva tem argumentado que estas serão “ULS 2.0”, mas não fica claro a que correspondem exactamente. Porque não se implementa um projeto piloto destas ULS 2.0 com avaliação e instauração de medidas correctivas antes de generalizarmos o modelo no imediato a todo o país?
Relativamente ao financiamento, será per capita e de acordo com uma estratificação de risco, que permitirá distinguir pacientes saudáveis, doentes crónicos e doentes complexos. Isto pode representar uma evolução positiva, fazendo corresponder o pagamento à carga de doença e, consequentemente, à dedicação a cada paciente. Será crucial, não obstante, garantir o investimento na prevenção e na promoção da saúde. Não podemos de modo algum desinvestir dos pacientes saudáveis: a vigilância da saúde infantil e juvenil, do adulto saudável, da grávida de baixo risco. Não podemos centrar o modelo na doença nem no hospital. E temos de definir inequivocamente o posicionamento dos cuidados de saúde primários nas ULS — evitando qualquer risco de os subalternizar aos cuidados hospitalares.
E as pessoas? Este é, quanto a mim, o ponto fantasma desta proposta. Refiro-me não às pessoas que o SNS serve — o foco no utente é inegociável, independentemente do modelo — mas às pessoas que serão os verdadeiros obreiros da reforma no terreno. Ademais, stakeholders essenciais como a Ordem dos Médicos reconhecem-se à margem do processo. Sabemos da dificuldade na fixação de médicos no SNS, da perda real de salário dos médicos que foi a maior na União Europeia entre 2010 e 2020, segundo dados da OCDE, bem como da exaustão e desgaste mencionados pelos profissionais de saúde. No entanto, aparentemente, avança-se com um modelo novo com profissionais desmotivados e excluídos até à data do processo.
Conceptualmente, reconheço potenciais vantagens a este modelo, mas precisamos de saber mais sobre como resultará na prática e na nossa realidade. O tempo trará a resposta à pergunta do milhão: com a generalização do modelo das ULS mudamos a cara ou mudamos a casa?