O Caso do Cadáver Esquisito 7: “Fiat Lux”, por Jorge Henrique Bastos

O sétimo episódio da “novela” escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que dá muitas voltas ao mundo. Aqui, a trama adensa-se com Jorge Henrique Bastos, português a viver no Brasil.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr
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O Caso do Cadáver Esquisito: Apresentação de uma experiência surreal, misteriosa e viajada com histórias de ficção diárias na Fugas

Todos os anos venho aqui neste dia. Desta vez, foi a missiva que chegou-me da forma mais absurda. Mas o mundo é absurdo. Tive de acostumar-me ao ritmo, sons e vida diferentes. As palavras adquiriram outros tons, outros sentidos, tudo bem distinto. Uma realidade tão misteriosa como o enigma que cavava dentro de mim profundidades impensáveis. Oito mil quilómetros de distância entre uma margem e outra. Oito e mil e quatrocentos metros de profundidade. Há mistérios tão fundos como esse mar, tão grandes como a distância que me divide de tudo. E aquele segredo esquecido entre os volumes, entre o tempo e a distância a aumentar paulatinamente, guindando-me para fora do mundo, para dentro de um mar interior. Dir-se-ia que a minha remissão se estenderia ao longo da vida, entre sigilo e silêncio, entre trevas e luzes que passei a forjar.

Parece que isso foi criado entre romanos, para assim poderem deleitar-se entre lautos jantares, seguidos de noites orgiásticas, entre o sagrado e o profano, entre a escuridão que preciso iluminar, enquanto prefiro toldar o que ficou para trás. Dizem que também eram feitas de gordura de baleia. Nunca esqueci o cheiro delas nas noites de Páscoa ou quando tocava às seis. Certamente não responderei. Eles que se aviem, quero manter-me longe, errante, em trânsito contínuo, a entregar-me aos sonhos e pesadelos que assombram minhas noites. Entre equinócios e solstícios que sempre hão-de voltar a cada ano, como as migrações, como as marés. Se a Terra define o seu lugar, eu nunca consegui fazer isso, encontrar um ponto, demarcar um local, exorcizar o amargor.

— Seu Zé!!??

Aprendi a acatar a música nova, as cores efetivas, os sabores intensos. Mas nunca deixei de sentir lá no fundo do meu mar interior o gosto amargo que precisava sempre anular. E tudo regressava à noite, quando cruzes ficavam repletas de serpentes enrodilhando-se entre a madeira sebosa, cercavam em frêmito os círios de altares onde figuras femininas copulavam, e espirais brilhantes de fumaças azuis preenchiam o ar. Os vitrais se movimentavam como caleidoscópios enlouquecidos, o sol atravessava-os e eu permanecia ali, fincado no meio daquilo que não sabia se era sonho ou realidade. Os volumes abriam-se sempre na mesma página, revelando-me o que recusava olhar, o que evitava aceitar: a atormentada evidência de que o passado jamais nos abandonará.

E eu levanta-me, penetrava noutras realidades, em fuga desse tormento, daquela imagem rediviva, daquela verdade mostrando-se à minha frente, mesmo quando pensava estar liberto do amargor. Mas não é assim tão fácil.

— Seu Zeeé!!??

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CARLOS MATOS

Não sei como isso há de acabar. Deixei as pistas bem definidas, mesmo o que passei a fazer explica muita coisa. Só não explica o meu silêncio, o meu distanciamento. Os círios maiores têm de ser bem feitos; há quem pague promessas com alguns da estatura de um homem, e o pavio arde durante dias e dias, e aquele cheiro penetrante de igreja abarca tudo, desperta sensações, torna a queimar a mácula, conta em atenuar a dor. O silêncio da chama a queimar desloca-me sempre para ambientes fechados, sacristias sombrias, museus vetustos, tudo o que não exalta o mundo atual, pelo contrário, lança-nos rumo a realidades esquecidas e ultrapassadas.

Ontem mais uma vez pensei nisso tudo. Hoje, volto ao cotidiano de observar o movimento dos homens para lá e para cá, empilhando caixas onde se lê “José & Irmãos”, enquanto a dona Laura traz papéis atrás de papéis para assinar e ler. Foi assim que vi a mensagem que me fora destinada. Não claudiquei em nenhum momento, apenas segui até a minha mesa, abri a gaveta que raramente abria, olhei. Pandora se expunha ali.

Mas não hão de encontrar-me outra vez, essas geringonças atuais causam-me pruridos. Sou um homem analógico, virtual só a memória do arrependimento. E esta arde todos os dias, como o tabaco que acabo de acender e trago com a fúria interior de quem queria permanecer distante de tudo, até de si mesmo.

— Seu Zé, foram 50 caixas desta vez.


O AUTOR: Jorge Henrique Bastos
Parafraseando o homem dos chocolates, vivendo e pulando entre quatro cidades, de um lado e doutro do oceano, voltou a aportar por estas bandas tropicais após uma longa temporada homérica pelos Portugais. Na bagagem trouxe apenas as palavras e o corpo, e a vontade de refazer muita coisa. Algumas se concretizaram; outras ainda seguem o curso dos dias e da vontade. É, também, transitando entre línguas que traça o mapa da vida atual, transpondo as palavras daqueles que mais admira, procurando fazer o melhor, respeitando cada vocábulo, e em cada frase procurando transfundir, com segurança e devoção, aquilo que quiseram dizer. Isto parece um trabalho que nunca finda. Tal como em cada peça que se fazia, entrando pelas madrugadas insones, aumentando a ansiedade com cada minuto que o relógio devorava e o prazo se consumia entre parágrafos suados.

Viveu para assistir (crê que todos nós) o espasmo em que o nosso ofício adentrou de maneira inevitável, e mesmo que não seja nostálgico, sente que tudo aquilo que os precursores fizeram, aos poucos torna-se provisório e desnecessário. O único fato a sobressair disso tudo – a deriva, o deslocamento de geografias, o nomadismo linguístico, enfim – é saber que a segunda geração nascida no lado de lá do Atlântico, parece estar forjando uma sensibilidade à flor da pele. Então, o orgulho tácito se transforma num sorriso longinquamente feliz.

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