Golfinhos com barbatanas cortadas continuam a dar à costa em Portugal

Todos os anos, dão à costa portuguesa dezenas de golfinhos mortos com a barbatana cortada. Captura acidental está na origem destas “amputações”, mas há soluções a serem estudadas.

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DR Torres Vedras Antiga
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Foi ao final de uma tarde, no final de Julho, que André, de 31 anos, encontrou um golfinho com a barbatana cortada na praia dos Quarenta, em Torres Vedras. Ligou à Protecção Civil, que activou a Rede de Arrojamentos de Lisboa e Vale do Tejo. “No próprio dia vieram lá recolher”, conta o autor do blogue Torres Vedras Antiga, onde denunciou a situação.

André não se ficou pela denúncia da situação nas redes sociais: entrou imediatamente em contacto com as autoridades para perceber o que era possível ser feito para evitar mais mortes de animais nesta situação - a chamada captura acidental -, quando ficam presos às redes de pesca e os pescadores lhes cortam as barbatanas para os “libertar”.

A primeira vez que André encontrou um golfinho sem barbatana na praia foi em 2019. Na altura, encontrou notícias sobre outros arrojamentos de animais mortos em condições semelhantes e “começou a estar mais atento”. “É bastante triste de ver”, descreve, recordando a meia dúzia de vezes que nos últimos anos voltou a testemunhar situações semelhantes e alertou as autoridades. “Não se está a fazer muito caso em relação a isto dos golfinhos”, considera André.

Mas não é bem assim. Em Portugal, a Rede Nacional de Arrojamentos, criada há quatro décadas, funciona agora em articulação com quatro redes locais em Portugal Continental: Norte, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. Aliás, o trabalho de ligação destas redes com as autoridades marítimas e protecção civil, assim como mais divulgação sobre o que fazer em caso de arrojamento, é precisamente um dos factores que têm levado a mais atenção por parte da população.

Presos nas redes

Ana Marçalo, coordenadora da Rede de Arrojamentos do Algarve, ajuda a organizar algumas ideias sobre este fenómeno. Antes de mais, há poucos estudos sobre as populações dessas espécies na costa portuguesa, mas algumas coisas sabemos: o “carismático e emblemático” golfinho-comum (Delphinus delphis) é a espécie mais abundante no nosso litoral e a população tem vindo a aumentar.

Estima-se ainda que os animais arrojados sejam 10% a 15% dos milhares de cetáceos que morrem todos os anos no mar (a maioria é levada para alto-mar e decompõe-se na própria água). Até ao fecho desta edição, o ICNF não forneceu dados sobre os arrojamentos de cetáceos mortos com barbatanas cortadas.

Ana Marçalo avança uma explicação: a nível nacional, a captura acidental (também chamada bycatch) continua a ser um grave problema, em particular no caso de espécies que estão com números populacionais muito baixos, como o boto. Aliás, a captura acidental é a causa principal de cerca de metade dos animais que arrojam na nossa costa. Isto em média, claro, pois pode variar consoante a distribuição das populações marinhas ou o esforço de pesca.

“Portugal tem um número de licenças muito grande de redes de emalhar”, explica ainda Catarina Eira, do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro, que coordena a Rede de Arrojamentos do Norte, região onde a frota de pesca é maior.

A nossa costa cheia destas “paredes de nylon” é um problema em particular na zona do centro e norte, onde há muito peixe e também concentração das populações de cetáceos, como o golfinho-comum e o boto, espécie já classificada como criticamente em perigo. “Este ano vamos ter o recorde de botos mortos desde que há registo”, alerta a investigadora, sem avançar ainda quantos destes animais foram apanhados em capturas acidentais.

O veterinário Miguel Grilo, da Rede de Arrojamentos de Lisboa e Vale do Tejo (​RALVT), descreve que, entre os 115 mamíferos marinhos cujo alerta foi recebido nos últimos dois anos na sua zona, foram identificados ferimentos que indiciam captura acidental em cerca de 25% dos casos (também surgem, residualmente, “situações de trauma” associado a abalroamento de embarcações).

Conflito de interesses

Investigadora na área dos arrojamentos e da mitigação da captura acidental, Ana Marçalo explica a “sobreposição de interesses” do sector da pesca e da chamada megafauna marinha, como golfinhos ou baleias: muitas vezes, as zonas de pesca e de habitat dos animais são as mesmas, o que gera conflitos quando os pescadores querem exercer a sua actividade e os animais querem obter o seu alimento.

Pelo meio, os golfinhos, que são espécies “oportunistas” e muito inteligentes, acabam por ser vítimas da própria esperteza: vão muitas vezes buscar o peixe que fica preso nas redes de pesca, poupando energia a capturá-lo, o que os coloca em grande risco de ficar presos nas redes e morrer de asfixia. “É isto que chamamos uma captura acidental”, explica Ana Marçalo.

Quando aparecem animais com barbatanas ou outras extremidades cortadas, há uma grande probabilidade de isso ter acontecido já com o animal morto, já que as redes de emalhar ficam várias horas dentro da água antes de serem recolhidas. Tratando-se de animais robustos, com mais de 80 quilos, é muito difícil libertá-los das redes. “A maneira mais prática de os retirarem das artes é decepar”, explica a investigadora. “Como não os podem ter a bordo, libertam-nos no mar.”

Perante este cenário, Miguel Grilo reconhece que “existe uma certa demonização dos pescadores” que é preciso desmontar. Também Ana Marçalo realça que “não é do interesse de um pescador capturar estes animais”. Por um lado, são espécies protegidas desde 1981, o que significa que os pescadores podem pagar coimas se forem apanhados com estes animais. Por outro lado, há uma dupla penalização para os pescadores na captura acidental: perdem o peixe que os golfinhos tentam comer agarrado às redes, e ficam também muitas vezes com as artes de pesca danificadas por causa dessa refeição fora do sítio.

Como resolver?

Uma das principais soluções passa por afastar os golfinhos das redes, já que o material de que são feitas - o nylon - não é perceptível acusticamente. Para tentar resolver estas situações, Ana Marçalo descreve que, no âmbito de projectos nos últimos anos, como o Cetambicion ou o Inovpesca, a equipa da Universidade do Algarve testou alarmes acústicos tanto no lançamento das redes de emalhar, que são colocadas ao longo de grandes extensões, como na frota do cerco, que captura com mais precisão cardumes de peixes num determinado local.

Os resultados foram “algo promissores”: no caso das redes de emalhar, os dispositivos diminuíram em 50% o nível de depredação (ou seja, a aproximação dos animais), e no cerco reduziu mesmo em 100% a captura do golfinho-comum.

Isto não significa, contudo, que se tenha descoberto a fórmula mágica: é preciso cuidado na utilização deste tipo de dispositivos para não exacerbar a já intensa poluição acústica no mar. No caso da pescaria do cerco, que dura poucos minutos, o impacto pode ser apenas moderado. Mas será sustentável ter milhares de embarcações com alarmes acústicos a soar ao longo das várias horas que as redes de tresmalhar ficam no mar?

“Não há uma única solução para este problema: sabemos qual é a causa, mas não podemos fazê-la desaparecer”, nota Catarina Eira, do CESAM. “Podemos é procurar maneira de compatibilizar estas actividades com a conservação dos animais.”

Além do mais, é preciso adaptar as soluções a cada território. “O que resulta no mar do Norte, nas ilhas britânicas ou no Pacífico pode não funcionar aqui”, nota Ana Marçalo. “O tipo de pesca é diferente, o fundo do mar é diferente, as espécies de cetáceos são diferentes e têm comportamentos diferentes”. E mesmo ao nível de Portugal os contextos são muito variados. No caso do Algarve, a equipa tem promovido reuniões participativas abertas a pescadores, associações de pesca e outras pessoas interessadas. “Se queremos trabalhar em conservação marinha, temos que trabalhar com os pescadores, que têm conhecimento empírico sobre o mar.”