A vírgula

O pai não ouvira esse barulho, o barulho da sua vida a ser poupada, por causa dos gritos.

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O Carlos saiu do quarto porque ouviu barulho na sala. No escuro, foi apalpando as paredes de cal do corredor para não cair ou ir de encontro a alguma coisa. O barulho vinha de facto da sala, uma respiração profunda, uns soluços. Depois, um choro convulsivo interrompido por um fungar. Depois, silêncio, depois, aos poucos, o choro recrudescia. A mamã, pensou o Carlos, chora sozinha à noite, mas na cama, e aquela não era a voz da sua mãe. Ao olhar pela porta da sala, viu um vulto recortado na janela, entre os cortinados verdes. Era o pai. Era ele que chorava. Agora, com a cabeça encostada ao vidro. O Carlos ficou a observá-lo durante uns segundos antes de, silenciosamente, voltar para o quarto e deitar-se. Mas naqueles segundos em que o observava, o Carlos, que ainda não era o urso mas para lá caminhava, perplexo perante o choro do pai, repetia para si mesmo as palavras que ouvia constantemente a sair da boca paterna: eu mato-te! Mas não dizia esta frase exactamente como o pai fazia, a gritar iracundo, mas mudo e sem ponto de exclamação ou ponto final, e muito menos reticências. Ele dizia a frase, na sua cabeça, com uma vírgula. Assim mesmo, com uma vírgula no final.

Esse "eu mato-te", haveria de ser o seu moto, a sua divisa, uma descrição rigorosa da sua alma. E o mais importante desta frase, claro, era precisamente a vírgula. Era nela que estava latente toda a ameaça. Era a postura inacabada que haveria de fazer vacilar quem lhe fizesse frente. A mudez e a imobilidade provocariam nos outros a sensação de um desastre iminente, um desabamento qualquer, uma hecatombe, um incêndio, porque a alma daquele que seria chamado o urso anunciava uma tragédia.

Já no seu quarto, olhando para o tecto da casa, o Carlos recordou o momento em que pegara na faca do pão e o momento em que a largou e ela caiu no chão da cozinha. O pai não ouvira esse barulho, o barulho da sua vida a ser poupada, por causa dos gritos da mãe do Carlos, da Luzia. E ali ficou a faca, no chão, até à manhã seguinte, quando a Luzia a apanhou e a voltou a colocar junto ao pano que servia para embrulhar o pão, sem suspeitar que segurava uma morte adiada.

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Fábrica de Criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta-feira. Ao sábado oiça os textos da semana em podcast, lido pelo autor. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts.

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