O Caso do Cadáver Esquisito 6: “Tempus fugit, memento mori”, por Filipa Taipina

O sexto “episódio” da “novela” de mistério, surreal e com muitas viagens, escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que vai dar muitas voltas e muito que falar.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos DR
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Caminante, no hay camino, se hace camino al andar... Não só sabia que não existia caminho, como não poderia existir nenhum Ti Zé! Há muito que não existia o nome José. Desde o misterioso e traumático fenómeno da Jangada de Pedra, que deixou à deriva a parte mais ocidental do velho continente e todas as mulheres da jangada grávidas. Os poderosos forjaram milhões na tentativa de trazer esse pedaço de volta ao velho continente e decidiram não dar a nenhuma criança o nome José. Acabaram-se assim os Zecas, Zequinhas, Zezinhos, Zezinhas, Zezitos, Zezitas e obviamente o Zé, o mais problemático de todos os nomes! A vontade de mudarem o seu fado foi tão grande que nem mesmo o Zé Povinho e o das Caldas sobreviveram. Não é que lhes tenha valido de muito, como dizia Abílio Mendes: “Não são os nomes que fazem as pessoas, são as pessoas que fazem os nomes.” De facto, o fado pouco ou nada mudou. Enfim, deixei de lado todo este tormento, era demasiado trágico e recente, é preciso ir muito, muito mais atrás.

Nino entra na sala com uma pilha de fac-símile, com os seus olhos azuis da cor do Mediterrâneo e o seu sorriso do tamanho do mundo. Carissima Anna, come va la ricerca? Ahhhhh! Como são divertidos os “falsos amigos”! Rimo-nos durante um grande pedaço de tempo. Tens estado com os amigos de Parma? Sim, respondi-lhe! Sorriu.

Bom... vamos ver o que encontraste. Hummm... tens noção de que podemos estar perto do princípio do fim? Nino folheava a grande velocidade para a frente e para trás todos os neumas e melismas espalhados pela grande mesa. Onde é que encontraste tudo isto? Num vale perto de Aeminium, respondi-lhe. Inacreditável! Nada disto era suposto ter chegado ali e muito menos desta forma, dizia Nino incrédulo! É praticamente impossível, ficamos às sassevA, do ossevA!

A face de Nino transfigurou-se e o seu semblante escureceu, o entusiasmo estilhaçou-se e até a cor dos olhos ficou acinzentada como o mar nos dias de tempestade. Atormenta-me a ideia de te deixar sem protecção, ainda mais perante tudo isto, tão novo e tão velho. Qualquer um de nós pode morrer, respondi, sabemos isso desde o início. Sim, mas promete-me que se alguma coisa acontecer pedes ajuda. Ajuda a quem? Ao Giacomo, o Franz já tem demasiados para proteger. Ao Bruder Jakob? Sim, sabemos todos que é o último das Sabedorias Viventes, não há mistério que lhe subsista. Nunca sabemos por onde anda, mas há muito que te ensinei como encontrá-lo, prometes-me? Simmm! Prometo! Continuei a espalhar tudo o que tinha encontrado em cima da grande mesa e continuámos: Iudicare vivos et mortuos; lumen de lumine; de ore leonis; invenerit vigilantem...

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Carlos Matos

Há tempos que não conseguia contactar Nino, sabia que quando estava em Moscovo era sempre difícil, mas pelos meus cálculos já deveria estar de volta a Milão. No entanto, não estranhei. Nino faz parte daquele grupo de pessoas que só usam o telemóvel quando precisam, e quase nunca se lembra que o dito artefacto também serve para o comum dos mortais o poder contactar! Era uma questão de geração, o Velhotinho fazia-me exactamente o mesmo.

As horas passavam, não havia notícias de Nino, comecei a sentir frio. Estava calor e o sol atravessava a janela da sala Perosi, mas cada vez sentia mais frio, um frio que vinha do interior do meu ser. Sentia-me insegura, há muito que sabia que o mal estava por perto, mas nunca tinha sentido medo, tinha a protecção de Nino e sabia que venceríamos o inimigo. Além de mais, estava num dos lugares mais seguros do mundo. Algo de muito estranho se passava. O telemóvel deu sinal de mensagem, senti ainda mais frio, medo! A mensagem era clara. Chorei copiosamente durante o tempo infindável de encharcar a minha alma.

Levantei a cabeça, respirei fundo, nunca pensei ter de cumprir esta promessa. Segui as instruções de Nino e do outro lado respondeu-me a voz serena de Giacomo, Bruder Jakob, como gostava de assinar. Preciso de o ver. Eu sei, espero-te amanhã às 15 horas, acho que tens tempo suficiente para chegar. Onde está? Em Santa Hildegardis, conheces bem, espero-te na biblioteca. A domani. A domani!


A AUTORA: Filipa Taipina
Nasceu em Lisboa na madrugada de um domingo de 1968. Tem uma paixão por livros antigos, de preferência milenares e cheios de neumas. Itália é o país onde a cegonha a deveria ter deixado e por lá vai vivendo sempre que consegue escapar aos compromissos no finis terrae. Doutorou-se em Roma, no Vaticano, em Canto Gregoriano. Professora do Instituto Gregoriano de Lisboa e directora artística do Mediae Vox Ensemble é também terapeuta de Bowen. Faz treino de competências e desenvolvimento pessoal e escreve regularmente para a revista Olhares do Centro Cirúrgico de Coimbra. Acredita que o humor, a criatividade e a empatia, aliadas ao rigor e exigência, são a sua forma de escapar às armadilhas da existência.

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