Scorsese, Schrader e mais 200 querem continuar com Chatrian em Berlim
Carta aberta à ministra da Cultura alemã é assinada por cineastas de todo o mundo, entre os quais Miguel Gomes e João Pedro Rodrigues, manifesta-se contra a saída do director artístico da Berlinale.
Martin Scorsese, Paul Schrader, Kleber Mendonça Filho, Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Ryusuke Hamaguchi, M. Night Shyamalan, Hong Sang-soo, Christian Petzold, Avi Mograbi, Joanna Hogg, Claire Denis, Ulrich Seidl, Vitaly Mansky, Olivier Assayas: são apenas alguns das duas centenas de cineastas e figuras do cinema que assinaram uma carta aberta à ministra da Cultura alemã, Claudia Roth, defendendo a continuação de Carlo Chatrian como director artístico do festival de cinema de Berlim.
Na carta, lê-se: “Nós, um grupo diversificado de cineastas de todo o mundo, que temos um profundo respeito pelo Festival Internacional de Cinema de Berlim como um local para grande cinema de todos os tipos, protestamos contra a conduta danosa, pouco profissional e imoral da ministra de Estado Claudia Roth, ao forçar o estimado director artístico Carlo Chatrian a abandonar o seu cargo, apesar das promessas feitas para prolongar o seu contrato”.
O crítico e programador italiano, que trocara a direcção do festival de Locarno por Berlim em 2020, foi apanhado de surpresa por uma reviravolta da entidade estatal que financia e supervisiona o festival, a Kulturveranstaltungen des Bundes in Berlin (KBB), que anunciou no final da semana passada ter decidido que a Berlinale voltaria à fórmula tradicional de director único, depois de quatro anos com uma direcção repartida entre Chatrian, como responsável artístico, e Mariette Rissenbaek, como responsável executiva. Isto apesar de ter sido acordado com o programador, em Março último, pela própria ministra que o seu contrato como director artístico seria prolongado, segundo declarações dadas por Chatrian à revista Variety, independentemente da nova forma que a direcção do festival viesse a tomar.
A declaração pública da KBB levou Chatrian a afirmar no site oficial da Berlinale, durante o fim-de-semana, “ser claro que, na nova estrutura tal como foi apresentada, as condições que me permitem continuar a ser director artístico deixaram de existir”. A edição de 2024, a decorrer de 15 a 25 de Fevereiro, será assim a última com a sua colaboração. A carta aberta indica que “sem surpresas, não foi apresentada ou discutida uma melhor visão para o festival, para lá da exigência questionável e politicamente retrógrada de uma mão forte de que a Berlinale supostamente necessitaria”.
Na carta aberta lê-se ainda: “Apesar das mais difíceis circunstâncias, todas para além do controlo de Chatrian — a pandemia, limitações financeiras, uma zona central do festival em deterioração ao redor da Potsdamer Platz — as últimas edições sob a sua liderança foram muito vivas, cheias de surpresas positivas e, apesar de exibirem um número mais pequeno de filmes, muito populares, ao mesmo nível das edições pré-pandemia. Igualmente, os filmes que receberam os principais prémios importantes do festival nos últimos quatro anos confirmaram-se ser filmes importantes, pois todos eles foram aclamados criticamente e mostrados por todo o mundo, quer nos circuitos comerciais quer noutros festivais importantes.”
De facto, perante uma paisagem radicalmente transformada pela pandemia global de covid-19 (a sua primeira edição, em 2020, foi o último festival de cinema antes do confinamento), a direcção de Chatrian e Rissenbaek conseguiu refrescar a imagem e a programação do festival, devolvendo-lhe um estatuto junto da imprensa e uma relevância de programação que esteve periclitante nos últimos anos da direcção do seu antecessor, Dieter Kosslick, e correndo significativamente mais riscos de programação do que os dois outros grandes festivais de referência, Cannes e Veneza.
Os Ursos de Ouro, prémio máximo do festival, foram entregues neste período a O Mal Não Existe, do iraniano Mohammad Rasoulof (2020), Má Sorte ao Sexo ou Porno Acidental, do romeno Radu Jude (2021), Alcarràs, da espanhola Carla Simón (2022), e Sobre o Adamant, do documentarista francês Nicolas Philibert (2023).
Andreas Bursche, numa coluna no jornal alemão Tagesspiegel, defende que a decisão alimenta o receio dos responsáveis culturais alemães pretenderem subordinar a direcção artística do festival aos interesses económicos, citando os cortes significativos no orçamento de que a edição de 2024 vai já ser alvo (levando à abolição de várias secções paralelas e inclusive à redução significativa da retrospectiva organizada anualmente pela Cinemateca Alemã). Bursche afirma ainda que esta decisão é exemplo da “falta de compreensão” que a “burocracia cultural” alemã tem pelo que a Berlinale representa económica e artisticamente para a capital do país.