Nasce o urso

E desse momento dramático resultou uma alteração do seu comportamento e da sua personalidade, tão importante que mudou a sua vida, para o bem e para o mal.

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Num dia igual a tantos outros, o Carlos, a quem haveriam de chamar o urso, ao ver mais uma vez o pai bater na mãe, agarrou na faca da cozinha que servia para cortar o pão, e enquanto a mãe gritava Severo, não me batas, o que é que eu fiz, Severo, o Carlos segurava a faca com a mão direita e assim ficou, parado, a ver a mãe ser espancada, petrificado pelo medo e pela confusão, quem sabe a imaginar o que poderia fazer, como espetaria a lâmina serrilhada até encontrar a paz diária, cortar a carne até o seu quotidiano se tornar normal, sem gritos, choro e lamentos, sim, imaginava tudo isso, como cravaria a longa faca do pão, imaginava tudo em pormenor enquanto a mãe gritava o que é que eu fiz, Severo, imaginava o metal a romper artérias e ossos do pai como os tractores a arar os campos, o que é que eu fiz, Severo, sim, imaginava tudo isso, como sangraria o pai como se fazia aos porcos na matança, o que é que eu fiz, Severo, e desse momento dramático resultou uma alteração do seu comportamento e da sua personalidade, tão importante que mudou a sua vida, para o bem e para o mal: porque imaginou apenas e não transformou a potência em acto, sentiu ter poupado a vida do pai, que só continuava vivo por sua decisão. E assim, a inércia resultante do medo e dum emaranhado confuso de emoções converteu-se numa estranha superioridade. A vida do pai tinha estado nas suas mãos, ele dispusera de um certo poder, que, exactamente por não ter sido utilizado, lhe conferira uma força invulgar, uma aura, uma postura que haveria de assombrar quem lhe fizesse frente. Foi o começo da sua reputação, uma solidez feita de impassibilidade perante a ameaça, que embora fosse fruto do pânico era interpretada exactamente ao contrário, como absoluta ausência de medo. E nada provoca mais receio do que uma pessoa que não teme nada, essas pessoas são montanhas, não adianta ameaçá-las, não arredam pé e nada as demove: na sua impenetrável rigidez desafiam o céu e a terra, ignoram o céu e a terra. Foi portanto nesse dia que o Carlos começou a criar dentro dele a alcunha que o havia de acompanhar até morrer, o urso.

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Fábrica de Criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta-feira. Ao sábado oiça os textos da semana em podcast, lido pelo autor. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts.

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