O Caso do Cadáver Esquisito 3: “De Formentosa-a-Nova a Beijo das Almas”, por Ricardo Nabais

O terceiro “episódio” da “novela” de mistério, surreal e com muitas viagens, escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que vai dar muitas voltas e muito que falar.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr
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O Caso do Cadáver Esquisito: Apresentação de uma experiência surreal, misteriosa e viajada com histórias de ficção diárias na Fugas

“AA”, “BB”, e por ali fora, numa navegação sincopada pelo livro dos baptismos. Já me habituara ao ruído diáfano do voo das páginas entre os dedos, uma monotonia hipnotizante. A pista era um despiste pelas iniciais dos apelidos — sabia que a linhagem teria origem nuns Orvalhados que, por estranhas artes da antroponímia e da compreensão traiçoeira de quem assentava os nomes nos registos, deram em Alvarados. Por isso, teria de virar o leme dos dedos para navegar, aos saltos pelas vagas finas das páginas, dos “OO” para os “AA”. Só não sabia quando se teria dado o salto no apelido.

“Psst, psst”, ouvi, de repente. Estariam a chamar um gato recém-entrado na capela, à caça de algum invasor? Era o Ti Zé, saído da sonolência morna daquela tarde. Dirigia-se a mim, afinal, como se eu fosse algum felino capaz de responder àquela chamada.

— Ó João, que andas para aí a remexer?

Não era estranho que a minha longa ausência da terra não tivesse tolhido a memória de toda a gente. Recordavam-se da Maria João; exilada, como muitos, mas nunca esquecida. A memória troça sempre de quem foge às raízes. As minhas tinham-se esticado como cordas, flexíveis, a centenas de quilómetros dali. Nunca quebraram, as cordas.

— Adeus, Ti Zé! Ando a ver nomes. A família...

— Nomes? De quem?

— A Ti Augusta, a minha bisavó...

— Os nomes não são a gente. Não dizem nada. Queres saber da Augusta? Estava amancebada de um primo do rei, ou lá que era... e de uns quantos que por aí apareciam. O pai era sem tino, pobrezito. E ela, ela lá se fez...

— Como, Ti Zé?

— Arranjou maridos como a seara se deita com as sementes... E ficava viúva logo depois. Cá na terra ninguém falava nela, era mau olhado lavrado... Isso é que era. Não remexas nisso. Foi-se embora em Maio, voltou dez anos depois. A erva Maio a dá, Maio a leva.

— E para onde foi?

O sacristão entrou, guiado muito provavelmente por deus e, de certeza, pela curiosidade. Fez um gesto como se enxotasse o Ti Zé, que saísse. Ia haver missa encomendada por uma alma qualquer. Quem não estivesse em cena, que saísse de cena. No teatro de deus mandava ele. “Ele”, em minúsculas, não o Tal, o Pai de todos.

Ainda tive algum tempo para uma última dança com as folhas do livro de baptismos. Tinha fixado, ao menos, alguns nomes de terras por onde os antepassados teriam assentado raízes. Formentosa-a-Nova, Sachola Caiada, Menestrel, Aparentela, Gaiata Formosa, Beijo das Almas... era uma linha reta num mapa de sonhos, mas pouco mais do que isso. Uma linha reta de mortos, um por cada lugar, como apeadeiros de um comboio que nunca chegou ao seu destino. Ou chegou, mas só com um passageiro, a minha bisavó. Teria ela largado cada um dos ocupantes pelo caminho, obrigando-os a escalas forçadas, a terminarem a grande viagem?

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CARLOS MATOS

O grupo de fiéis chegava entretanto para a missa. O olhar do sacristão já me indagava sobre a fé, se a teria meio cheia ou meio vazia. Escolhi a segunda hipótese e saí da capela. Uma chuva miudinha fechava o cortejo e batia na porta, que se encerrava, à chuva e à marcha prosaica da humanidade.

Saí. Lá estavam os imutáveis pequenos negócios que animavam a vida lenta destas paragens. A estalagem Laurentina, o café do Corisco, a oficina Auto Estima... não sei por que a minha atenção se deteve neste modesto património.

Voltei ao centro da aldeia, ainda com o eco do último som dos sinos a martelar-me a cabeça. Augusta, Augusta..., murmurava, com os pensamentos a saltar da minha cabeça, resumidos àquele nome. Teria de voltar ao livro dos baptismos para reconstituir aquela linha reta de lugares, possibilidades, espectros. Estes cenários mentais foram decepados pelo passo rápido do Ti Zé, que largava por ali fora, rumo à adega. Segui-lhe aquela espécie de corrida ansiosa, comprometida, mas muito determinada. Algo me dizia para não lhe soprar o nome ao vento, para não lhe atrapalhar o caminho.

O Ti Zé abriu a porta da adega com uma chave comprida. Olhou em volta, uma, duas, vezes sem conta, até se certificar de que não havia ali vivalma. Apressei o passo, pelo lado contrário. A chuva miudinha impedia-me de ver o que ia ali fazer ou encontrar. A porta fechou-se, suavemente, para que o estrondo não despertasse, sequer, as consciências.

Jurei que haveria de lá voltar. Havia de traduzir aqueles mistérios da conversa do Ti Zé para uma língua viva, a do presente. Escarneci da escuridão da adega, haveria de a encontrar e enfrentá-la de frente. A minha curiosidade era tão grande quanto as raízes que me prendiam àquele lugar.


O AUTOR: Ricardo Nabais
​Há quem tenha o azar de ir lá morrer. Ele nasceu na praia. Não é exagero: a terra natal, Luanda, ameaça sempre desaparecer num mergulho no Atlântico, morno e agradável naquelas latitudes. Dados os primeiros passos, escolheu a direcção do mar e o mapa torto das correntes levou-o para o continente em frente. Aguardava-o o Rio de Janeiro, cidade com a qual partilha, orgulhosamente, aniversário e que lhe ensinou as primeiras letras. Desde então tem feito rimas involuntárias, e assim se sente bem, em terras de párias. E pária, rimará com praia? Nem por isso. O passo seguinte foi a Área Metropolitana de Lisboa, que o segurou até hoje e lhe apresentou outras letras, mais alinhadas e informativas: seguiu as correntes do Jornal de Letras, do Expresso, do Sol. Mas não caiu como um Ícaro nesse voo. Fez-se uma espécie declarada em risco, jornalista (Homo papirus de nome científico, se Lineu fosse vivo). De tanto seguir correntes, o seu rumo volátil fê-lo peixe de água doce e salgada. Para tentar fugir às coisas banais, nomearam-no Nabais. Ricardo.

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