O Caso do Cadáver Esquisito 2: “O tempo de cá e de lá”, por Alda Rocha
O segundo “episódio” da “novela” de mistério, surreal e com muitas viagens, escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que vai dar muitas voltas e muito que falar.
Fiquei de tal modo aturdida com as revelações do Ti Xico que na minha timidez adolescente não fui capaz de perguntar mais nada. Nem-Um-Pio. Só queria pedalar, pedalar sem rumo, o vento no cabelo a devolver-me alguma leveza, e deixar que o sol no rosto fizesse o resto.
Acabei de pés enfiados no açude, aquela água gelada quase a molhar-me a beirinha dos calções, e eu a divagar. Nada daquilo fazia sentido. Uma aldeia em suspenso num-amanhã-logo-vemos, de morre não morre quem já morreu, a tentação irresistível de dar um passo e atravessar para o outro lado do tempo, e — o mais intrigante de tudo! — aquela velhinha eterna, que eu conhecia sabe-se lá de onde, uma assassina. Que fé-ri-as!
Não faço ideia quanto tempo terei ficado por ali, absorta nos meus pensamentos, mas não há dúvida de que a natureza sabe fazer o seu caminho no que toca a chamar-nos à Terra. Uma libelinha passou a não mais que um palmo do meu nariz, despertando-me dos meus devaneios.
Ainda me lembrava bem miúda, de ser impossível chegar ali de sapatos limpos, quanto mais de bicicleta. À medida que nos íamos aproximando do riacho, a água começava a aflorar do chão e os caminhos irregulares e estreitos ficavam tomados pela lama; para não falar dos seixos, como diabo aquelas terras tinham tantos seixos?! Agora, com o estradão de brita a cortar os campos, quase dava para bater recordes pessoais — excepto a subir!
Fui por ali fora de rabo alçado, com ímpeto para vencer o declive, que aquelas mudanças deixavam muito a desejar. Cismei que havia de regressar pelo caminho mais longo, quem sabe tinha uma pista de onde poderia ser o sítio das almas vagueantes, onde Augusta confessara ser uma assassina. E até que não foi de todo em vão, porque não fora a volta maior e tinha passado ao largo da porta dos Boticas. A Lurdinhas andava de volta das dálias, com a cadelita de roda das pernas, de cauda a dar a dar, toda feliz de a ter por perto. Porém, mal tomou tino de que vinha lá gente, saiu numa correria desenfreada, até a dona assomar ao portão.
— Andas perdida ou não queres dizer?
— Olá, prima Lurdinhas, está tudo bem consigo?
— Ó João, tu deixa-te dessas coisas que eu não sou de cerimónias, e dá-me mas é cá um abraço! A última vez que te vi não passavas dum pau de virar tripas e olha que bela moça te tornaste!
Senti-me corar por entre o aperto daqueles braços roliços, sem quase dizer palavra. Por mais que tenha evitado o “Maria João”, não resistiu ao “moça”. O cabelo curtinho e as roupas neutras não chegavam para a demover de me tentar encaixar onde sabia que eu não pertencia.
— Podia dar-me um copo de água?
— Anda mas é daí comer uma bucha. E tens de me contar que raio de fantasma se cruzou no teu caminho, que estás cá com uma cara...
Ai, o que eu gostava de bolo-de-noiva! Aquela massa densa, consistente, a saber a erva-doce, a aconchegar-me o estômago e o ânimo. Quem se teria casado? É que nem de propósito, quando andava eu à procura da noiva de causas que ninguém levava muito a sério. Claro que a Lurdinhas sabia da Augusta, todos na aldeia conheciam a noiva de reis e príncipes, contrabandistas e marinheiros, a noiva eterna, do tempo de cá e de lá. Mas não foi de grande serventia perante as minhas inquietações: há quem seja feliz a cuidar do jardim, sem mais delongas existenciais.
Bem, posso estar a ser injusta. A verdade é que todo aquele desenrolar de parentescos, numa vasta floresta genealógica difícil de organizar, me deu a ideia de ir tentar a sorte com o velho sacristão. Talvez ainda me reconhecesse como o anjinho desasado do final da procissão de Nossa Senhora das Dores, uma boa década antes — ou se calhar depois, que isto do tempo não é fiel de grandes certezas.
Empurrei a porta da capela lentamente e fiquei parada a respirar o ar fresco — e estranhamente húmido, para um dia quente de Verão. Ainda levei uns segundos até os meus olhos se habituarem ao escuro e me devolverem o contorno dos velhos bancos mais ou menos alinhados, os genuflexórios como apêndices nas traseiras. O odor, esse, permanecia inalterável, naquela mistura de madeira velha, flores e velas ardidas.
Avancei para a sacristia e lá encontrei o Ti Zé recostado a dormitar. Pois que sim, que ainda se lembrava da cachopa desdentada que tinha perdido uma asa, tantas vezes a história tinha despertado umas boas gargalhadas entre rodadas de mínis.
Senti um arrepio, quando finalmente tomei o peso ao livro dos baptismos. A capa forrada a couro, com os caracteres já muito sumidos, lá estava, em toda a sua solenidade, a guardar os assentos de nascimento. Não sabia muito bem por onde começar, mas tinha a certeza de que seria por entre aquelas letras cuidadosamente desenhadas a cursivo que ia encontrar um sinal daquela que viria a ser minha bisavó. Eu que noutro tempo já tinha morrido, antes sequer de ter nascido.
A AUTORA: Alda Rocha
Sempre quis saber de que massa são feitas as coisas, mas a aversão a vísceras levou-a a fugir a sete pés de dissecações e outras esquisitices que tais. Felizmente percebeu a tempo que o jornalismo lhe podia satisfazer a curiosidade sem ter de sujar as mãos e que até havia uma secção de Ciência e Tecnologia num jornal chamado Público. Foi aí que pela primeira vez viu uma colega vasculhar nas entranhas do que viria a ser a Internet, mas muitas das primeiras dúvidas ainda a obrigaram a enfiar o nariz na Enciclopédica Britânica da redacção. No par de anos passados no Expresso, cirandou entre o infinitamente pequeno e as larguezas dos cosmos, numa clara premonição da variedade de temas que a ocupariam nos longos anos como freelance. De peripécias aéreas do tempo do hélice à dureza dos apanhadores de percebes, já encadernou meia dúzia de palavras em capa dura. Sempre a contar a vida como ela é, porque não se lhe conhece nenhum jeitinho para a ficção.