O Caso do Cadáver Esquisito 2: “O tempo de cá e de lá”, por Alda Rocha

O segundo “episódio” da “novela” de mistério, surreal e com muitas viagens, escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que vai dar muitas voltas e muito que falar.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr
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O Caso do Cadáver Esquisito: Apresentação de uma experiência surreal, misteriosa e viajada com histórias de ficção diárias na Fugas

Fiquei de tal modo aturdida com as revelações do Ti Xico que na minha timidez adolescente não fui capaz de perguntar mais nada. Nem-Um-Pio. Só queria pedalar, pedalar sem rumo, o vento no cabelo a devolver-me alguma leveza, e deixar que o sol no rosto fizesse o resto.

Acabei de pés enfiados no açude, aquela água gelada quase a molhar-me a beirinha dos calções, e eu a divagar. Nada daquilo fazia sentido. Uma aldeia em suspenso num-amanhã-logo-vemos, de morre não morre quem já morreu, a tentação irresistível de dar um passo e atravessar para o outro lado do tempo, e — o mais intrigante de tudo! — aquela velhinha eterna, que eu conhecia sabe-se lá de onde, uma assassina. Que fé-ri-as!

Não faço ideia quanto tempo terei ficado por ali, absorta nos meus pensamentos, mas não há dúvida de que a natureza sabe fazer o seu caminho no que toca a chamar-nos à Terra. Uma libelinha passou a não mais que um palmo do meu nariz, despertando-me dos meus devaneios.

Ainda me lembrava bem miúda, de ser impossível chegar ali de sapatos limpos, quanto mais de bicicleta. À medida que nos íamos aproximando do riacho, a água começava a aflorar do chão e os caminhos irregulares e estreitos ficavam tomados pela lama; para não falar dos seixos, como diabo aquelas terras tinham tantos seixos?! Agora, com o estradão de brita a cortar os campos, quase dava para bater recordes pessoais — excepto a subir!

Fui por ali fora de rabo alçado, com ímpeto para vencer o declive, que aquelas mudanças deixavam muito a desejar. Cismei que havia de regressar pelo caminho mais longo, quem sabe tinha uma pista de onde poderia ser o sítio das almas vagueantes, onde Augusta confessara ser uma assassina. E até que não foi de todo em vão, porque não fora a volta maior e tinha passado ao largo da porta dos Boticas. A Lurdinhas andava de volta das dálias, com a cadelita de roda das pernas, de cauda a dar a dar, toda feliz de a ter por perto. Porém, mal tomou tino de que vinha lá gente, saiu numa correria desenfreada, até a dona assomar ao portão.

— Andas perdida ou não queres dizer?

— Olá, prima Lurdinhas, está tudo bem consigo?

— Ó João, tu deixa-te dessas coisas que eu não sou de cerimónias, e dá-me mas é cá um abraço! A última vez que te vi não passavas dum pau de virar tripas e olha que bela moça te tornaste!

Senti-me corar por entre o aperto daqueles braços roliços, sem quase dizer palavra. Por mais que tenha evitado o “Maria João”, não resistiu ao “moça”. O cabelo curtinho e as roupas neutras não chegavam para a demover de me tentar encaixar onde sabia que eu não pertencia.

— Podia dar-me um copo de água?

— Anda mas é daí comer uma bucha. E tens de me contar que raio de fantasma se cruzou no teu caminho, que estás cá com uma cara...

Ai, o que eu gostava de bolo-de-noiva! Aquela massa densa, consistente, a saber a erva-doce, a aconchegar-me o estômago e o ânimo. Quem se teria casado? É que nem de propósito, quando andava eu à procura da noiva de causas que ninguém levava muito a sério. Claro que a Lurdinhas sabia da Augusta, todos na aldeia conheciam a noiva de reis e príncipes, contrabandistas e marinheiros, a noiva eterna, do tempo de cá e de lá. Mas não foi de grande serventia perante as minhas inquietações: há quem seja feliz a cuidar do jardim, sem mais delongas existenciais.

Bem, posso estar a ser injusta. A verdade é que todo aquele desenrolar de parentescos, numa vasta floresta genealógica difícil de organizar, me deu a ideia de ir tentar a sorte com o velho sacristão. Talvez ainda me reconhecesse como o anjinho desasado do final da procissão de Nossa Senhora das Dores, uma boa década antes — ou se calhar depois, que isto do tempo não é fiel de grandes certezas.

Empurrei a porta da capela lentamente e fiquei parada a respirar o ar fresco — e estranhamente húmido, para um dia quente de Verão. Ainda levei uns segundos até os meus olhos se habituarem ao escuro e me devolverem o contorno dos velhos bancos mais ou menos alinhados, os genuflexórios como apêndices nas traseiras. O odor, esse, permanecia inalterável, naquela mistura de madeira velha, flores e velas ardidas.

Avancei para a sacristia e lá encontrei o Ti Zé recostado a dormitar. Pois que sim, que ainda se lembrava da cachopa desdentada que tinha perdido uma asa, tantas vezes a história tinha despertado umas boas gargalhadas entre rodadas de mínis.

Senti um arrepio, quando finalmente tomei o peso ao livro dos baptismos. A capa forrada a couro, com os caracteres já muito sumidos, lá estava, em toda a sua solenidade, a guardar os assentos de nascimento. Não sabia muito bem por onde começar, mas tinha a certeza de que seria por entre aquelas letras cuidadosamente desenhadas a cursivo que ia encontrar um sinal daquela que viria a ser minha bisavó. Eu que noutro tempo já tinha morrido, antes sequer de ter nascido.


A AUTORA: Alda Rocha
Sempre quis saber de que massa são feitas as coisas, mas a aversão a vísceras levou-a a fugir a sete pés de dissecações e outras esquisitices que tais. Felizmente percebeu a tempo que o jornalismo lhe podia satisfazer a curiosidade sem ter de sujar as mãos e que até havia uma secção de Ciência e Tecnologia num jornal chamado Público. Foi aí que pela primeira vez viu uma colega vasculhar nas entranhas do que viria a ser a Internet, mas muitas das primeiras dúvidas ainda a obrigaram a enfiar o nariz na Enciclopédica Britânica da redacção. No par de anos passados no Expresso, cirandou entre o infinitamente pequeno e as larguezas dos cosmos, numa clara premonição da variedade de temas que a ocupariam nos longos anos como freelance. De peripécias aéreas do tempo do hélice à dureza dos apanhadores de percebes, já encadernou meia dúzia de palavras em capa dura. Sempre a contar a vida como ela é, porque não se lhe conhece nenhum jeitinho para a ficção.

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