O Caso do Cadáver Esquisito 1: “A presença de Augusta”, por Miguel Calado Lopes
O primeiro “episódio” da “novela” de mistério, surreal e com muitas viagens, escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que vai dar muitas voltas e muito que falar.
Nas horas do silêncio absoluto, no lusco-fusco das auroras e dos crepúsculos, o andar de Augusta sugeria a imagem em movimento projectada por um cinetógrafo. O foco do holofote rotativo do Cabo Sardão entrecortava-lhe os passos, o que lhe dava uma aparência espectral, uma presença a um tempo maléfica e sinistra e, a outro, benevolente e angélica. Vinha e ia envolta numa maresia brumosa, resplandecente e convidativa, num instante, e de um azul anegrado e ameaçador, no instante seguinte. A bruma fazia-lhe chegar, só a ela, o murmúrio melódico da respiração sincopada do mar desaguando em sonhos. Raros eram os que a viam. E os que tiveram a sorte ou o azar de a ver a essas horas contribuíam depois, ao aumentarem um ponto aos seus contos, para a boa e má fama de Augusta. Foi assim que nasceu o receoso entreolhar que se tornou uma das características dos aldeãos.
Salvas as madrugadas e os entardeceres, era quase sempre depois dos almoços e a seguir às sestas que ela aparecia todos os dias na sonolenta aldeia. Fosse como aparecesse, o seu andar era lento mas decidido.
Foi numa tarde sufocante de um desses dias que Augusta passou frente ao Café da Adélia com o seu vestidinho de algodão cor-de-rosa desbotado, quase branco, sandálias de lona de meio salto de um vermelho queimado e uma velha mas elegante pequena sombrinha azul claro com florinhas lilases a protegê-la do sol inclemente. Surpreendia a sua postura direita e ligeiramente altiva a suportar com facilidade o peso da idade. No entanto, havia nela uma fragilidade que não se via de passagem. O ombro esquerdo parecia ter sido atirado para trás por um impacto de bala. Difícil de dizer. Bastava que a brisa do dia tivesse um repente para ela balançar ligeiramente e era esse andar balanceado por forças externas à sua vontade que lhe davam a leveza e elasticidade de uma vara verde. As pernas delgadas num movimento autónomo da sua vontade.
— Será que é desta?, comentaram no café.
Ninguém sabia ao certo como, quando e por onde Augusta vinha ou ia. Umas vezes aparecia pela Rua Nova do Nascente, outras pela Rua da Feira ou pela rua da Segurança Social. Surgia mais vezes pela Rua das Flores e pela Rua das Gaivotas. De tempos a tempos viam-na na Estrada de Almograve. Detinha-se sempre a descansar um pouco no banco do Largo da Igreja ou no do Largo da Palmeira, isso toda a gente sabia.
Toda a aldeia sabia, menos eu, evidentemente, que a hora de a Augusta passar pelo Café da Adélia marcava o fim das conversas do dia e iniciava a hora das apostas.
— Será que é desta?, perguntava invariavelmente o Ti Xico.
— Amanhã logo vemos!, respondia invariavelmente o Toino.
— O que é que apostas?
— Uma bica com cheirinho.
Aquele amanhã-logo-vemos tirou-me o sono desde então. Nas manhãs seguintes não via nada de anormal e punha-me a imaginar as mil e uma coisas que podiam suceder numa aldeia onde nunca se passou nada. Quando a Augusta voltava a passar vinha a confirmação de que, mais uma vez, não se tinha passado nada.
Olhei para a irrealidade temporal da sua figura longe de pensar que viria a ser a minha bisavó. Vi-a, como toda a gente a via — a maluquinha da aldeia, a velhinha fantasmagórica que impõe doses iguais de respeito e troça. A sua extravagância, a sua meia loucura e o seu distanciamento suscitavam medo. Ouvindo-a balbuciar num resmungo solitário, qualquer um pode pensar que está a dirigir-lhe a palavra desvendando segredos e histórias familiares que ninguém devia saber. O que assusta os aldeãos, especialmente os mais velhos que a conhecem desde há anos, é a sua capacidade de ter assente o passado, prever o futuro e não viver no presente.
Talvez por eu ter chegado há poucos dias à aldeia, por ter visto em mim uma parecença, por me ter visto na esplanada do café, por se ter interrogado sobre a forma como eu a contemplava, por me ter levantado para a cumprimentar, por o ter feito com uma reverência a que não estava habituada, por lhe ter dito boa tarde minha senhora com a voz embargada sem razão, por ter visto em mim algo dela, parou a meio da rua poeirenta e olhou para todos os lados para se certificar que era de facto ela o alvo da minha atenção. Parou e olhou-me cara a cara. Deve ter sido o meu ar andrógino que a intrigou. Adolescente, sem dúvida. Quinze,16 anos? Rapaz ou rapariga? Apontou-me o dedo indicador da mão direita como se fosse uma pistola com mira assestada à minha cabeça e disse com uma voz meiga estava a ver que não chegavas a horas de jantar. Fulminou-me o seu olhar. Retive o verde dos seus olhos, acinzentado por anos de muitas visões. Um olhar de uma alegria passada teimosamente persistente. Sorriu ao ver o meu embaraço.
— Anda daí, não tenhas medo.
Fiquei sem saber o que fazer. Ninguém se atreveu a ajudar-me a decidir. Hesitei em atravessar a linha do tempo que nos separava. Lembrei-me a despropósito do professor de Ciências que me disse que o único grande mestre antes dele era o tempo, mas que, infelizmente, tinha morto todos os seus alunos. Tinha a certeza de que ia ganhar ou perder. Nunca mais seria igual, mas desconhecia o que seria de mim. Se atravessasse a rua poeirenta, não poderia voltar atrás. Se não atravessasse, lamentaria não ter tido a coragem de ir à procura de um sentido para a minha vida.
— Amanhã logo vemos!
— O senhor desculpe-me, como se chama?
— Prantaram-me Toino.
— Ó Sr. Toino, quem é aquela senhora?
— É a noiva eterna.
— Noiva de quem?
— De todos nós e dos outros.
— Não percebo!
— Noiva de reis e príncipes, contrabandistas e marinheiros, eu sei lá. Noiva de causas, é o que ela diz mas nós não percebemos. É o que ela diz mas ninguém acredita.
— Quando dizem amanhã logo vemos, estão à espera de ver o quê?
— Estamos à espera que ela morra, mas ela nunca morre.
— Porque é que havia de morrer assim, de um dia para o outro?
— Porque nos disse que já morreu trespassada por setas de envelhecimento lançadas por um monstro que a perseguia desde a juventude. Foi durante o sonho que teve na noite dos seus cem anos.
— Se morreu num sonho, está viva ou morta?
— Não sabemos, só sabemos que é uma assassina.
— Uma assassina?!
— Já sei por que os matei, foi o que ela nos disse no sítio.
— Qual sítio?
— O sítio das almas que dá para o mar.
O AUTOR: Miguel Calado Lopes. Com o dinheiro de um Prémio Reportagem do Club Português de Imprensa comprou um telescópio, mas só viu estrelas quando partiu a bacia num exercício militar antes de ir para a guerra em Angola. Repórter de cabaz da praça (comparação de preços nos mercados), viu o seu primeiro artigo assinado numa secção de desporto, coisa que nunca praticou. Foi autor de horóscopos diários inventados, de correios pessoais escarrapachados em página ímpar e de reportagens um pouco por todo o mundo. Foi assessor de imprensa de ministros e pôs um, do Ambiente, de água na boca para o tinto que se seguiria ao seu (meu) discurso na Confraria da Água. Terminou a carreira como editor do jornal Expresso, colabora ocasionalmente no Público e escreveu uma sátira à volta da evolução do conceito de masculinidade. O Grande Chefe Caseiro na Mão Delas foi um “flop” de todo o tamanho porque, é claro, com a virilidade dos homens não se brinca. Anda à procura de editora para dois livros: Uma História Sem Pés Nem Cabeça, inteiramente escrito em português idiomático, com mais de 200 ilustrações de Mariana Crisóstomo, e A Natureza da Viagem — a sua perplexa intimidade perante a beleza, a escrita, a viagem, a reportagem, a crónica, a vida. Está absolvido, desde há dezenas de anos, de concordâncias e discordâncias ortográficas, erros gramaticais, lapsos e gralhas, graças a uma indulgência do Papa Pio XII passada à sua família.