Lei da amnistia também abrange processos disciplinares e está a gerar confusão

A lei não estipula limites a quem é abrangido por este ponto, pelo que o entendimento é que todas as categorias profissionais são elegíveis.

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A lei entra em vigor nesta sexta-feira, mas está a suscitar muitas dúvidas Ricardo Lopes/Arquivo
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A lei criada no âmbito da Jornada Mundial da Juventude e da visita do Papa Francisco a Portugal, e que se refere a perdão de penas e amnistia de infracções, vulgarmente designada por lei da amnistia, também abrange processos disciplinares, sem qualquer limite de idade. A lei entra em vigor nesta sexta-feira e prevê que sejam amnistiadas “as infracções disciplinares e as infracções disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”, desde que tenham ocorrido até às 00h00 de 19 de Junho.

A notícia foi avançada nesta sexta-feira pelo Expresso, mas já na segunda-feira a presidente do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados (OA), Alexandra Bordalo Gonçalves, publicara um artigo de opinião n'O Jornal Económico, com o título "O confisco do poder disciplinar", no qual criticava a medida.

No artigo, a responsável da OA referia-se ao facto de a lei nada estipular sobre limites de idade ou de categorias profissionais abrangidas, referindo: “Ou seja, caem aqui todas as infracções disciplinares. Incluindo as dos processos disciplinares instaurados nas ordens profissionais, só se excluindo as infracções disciplinares que não constituam ilícitos penais não amnistiados, ou cuja sanção seja a expulsão. Também aqui se incluem as infracções disciplinares laborais, mais uma vez que não configurem crime não amnistiado, e cuja sanção não seja o despedimento. Significa isto que a Lei da Amnistia confiscou o poder disciplinar das ordens profissionais, das empresas e empregadores, só o permitindo nos processos que culminem com expulsão ou despedimento.”

Alexandra Bordalo Gonçalves diz desconhecer se alguma vez se assistiu ao que designa de “ingerência no foro privado das empresas” e insiste que “se desconhece por completo a fundamentação subjacente a esta medida”, ironizando: “Limpar processos? Diminuir a pendência nos tribunais? Garantir um lugar no céu? Constituir-se, definitivamente, um governo alicerçado na maioria parlamentar?”

A falta de detalhe sobre esta parte da lei que, inicialmente, foi divulgada como uma amnistia dirigida apenas aos jovens até aos 30 anos está, assim, a suscitar muitas dúvidas, como admite ao PÚBLICO a bastonária da Ordem dos Enfermeiros (OF), Ana Rita Cavaco. “Isto é uma pequena confusão. Os advogados que trabalham com o conselho jurisdicional [da OF] ainda estão a analisar a lei, mas o que me dizem é que todas as penas que aplicámos até ao dia 19 de Junho são abrangidas, desde que sejam censuras ou advertências escritas que não impliquem outra pena associada”, diz.

A bastonária dá um exemplo: “Um enfermeiro que fez acessos indevidos ao processo de um doente e que teve uma pena de censura ou advertência escrita, à partida, não será amnistiado porque isto é um crime. Vai depender das advertências e censuras, e ainda estamos a tentar perceber isto bem. O que me tranquiliza é que ficam de fora todas as penas de suspensão e expulsão”, refere.

Ana Rita Cavaco desvaloriza a questão da eventual ingerência no trabalho disciplinar das ordens profissionais, mas diz-se surpreendida com o facto de não ser apresentado um limite temporal para a aplicação da amnistia e lamenta que se tenha optado por esta solução. “No nosso caso, estas infracções disciplinares estão relacionadas com o cuidar de pessoas. Se foi aplicada [uma pena] é porque agiram mal no seu exercício profissional. Não estamos a falar de uma multa, acho que aqui é mais grave”, afirma.

O PÚBLICO contactou também a Ordem dos Médicos, mas esta não quer para já pronunciar-se. Na quinta-feira houve uma reunião do conselho superior deste organismo e os juristas que o assessoram estão ainda a avaliar a lei, esperando-se um parecer sobre a mesma nas próximas horas.

A chamada "lei da amnistia" abrange “sanções penais” que não constituam crimes graves, praticados por pessoas entre os 16 e 30 anos, até às 00h00 do passado dia 19 de Junho. Contudo, o seu âmbito acabou por ser alargado, abrangendo também “sanções acessórias relativas a contra-ordenações” praticadas até à mesma data, sem limite de idade, e “sanções relativas a infracções disciplinares e infracções disciplinares militares” praticadas até àquela data, “que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”.

De fora da amnistia ficam todos os crimes de homicídio ou infanticídio, violência doméstica, coacção, abuso de confiança, extorsão, discriminação e incitamento ao ódio e violência, condução perigosa, associação criminosa, corrupção e branqueamento, terrorismo, auxílio à imigração ilegal, tráfico de armas ou estupefacientes e outros, considerados graves.

Ficam também de fora da amnistia os reincidentes ou as pessoas condenadas por “crimes cometidos contra membros das forças policiais e de segurança, das Forças Armadas e funcionários, no exercício das respectivas funções”.

Conforme o PÚBLICO noticiou esta semana, a lei da amnistia causou também a revolta dos magistrados, que receberam ordens da Direcção-Geral da Administração da Justiça para acelerarem os processos de concessão de amnistia e perdão, relacionados com esta lei.

Os magistrados que governam as comarcas judiciais do país consideram que as ordens são “ilegais” e que constituem uma “inusitada interferência” nos seus poderes, tendo o caso levado mesmo a uma reunião de emergência do conselho permanente do Conselho Superior da Magistratura.

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