Três livros voltam a casa

O catálogo das bibliotecas de Lisboa dá poucos indícios sobre as vidas pregressas dos seus livros. Conheço a história de três exemplares. Todos por minha culpa.

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Tudo flui e nada permanece. Uma sentença que pode servir para tudo o que se transforma: uma cidade, uma casa, uma garrafa de vinho, uma carícia. Será que é possível aplicá-la aos livros?

Em princípio, não. Pelo menos, não por inteiro. Ao contrário da água que corre nos rios, o texto de um livro costuma permanecer o mesmo, com excepção feita às revisões e acordos ortográficos. Toda a transformação na leitura é provocada pelas mudanças no humano que lê e relê. Mas se o texto é imutável, o mesmo não pode ser dito do objecto livro. As encadernações peregrinam por estantes e prateleiras. As páginas ficam amarelas com o tempo, ganham sublinhados e comentários. Dois bons lugares para se observar este fenómeno são as livrarias em segunda mão, chamadas de alfarrabistas em Portugal e de sebos no Brasil e, claro, as bibliotecas.

O catálogo da BLX, rede de bibliotecas de Lisboa, dá poucos indícios sobre as vidas pregressas dos seus livros. Diz apenas se o exemplar está na estante, no depósito, emprestado ou indisponível. Cabe a essa última categoria a tarefa de provocar as dúvidas e alimentar os mistérios. Indisponível, porquê? Aconteceu um roubo, uma morte, um esquecimento? Conheço a história de três desses exemplares, indisponíveis entre Março de 2020 e Agosto deste ano: um Pais e Filhos, de Ivan Turgueniev, um A Paixão do Jovem Werther, de Goethe e um Num País Livre, de V.S. Naipaul. Todos por minha culpa.

Em Março de 2020, eu vivia em Lisboa num T4 dividido com quase desconhecidos na freguesia de Arroios. Iniciava o segundo semestre da pós-graduação em Artes da Escrita na Universidade Nova. Se por acaso alguém se esqueceu, este foi o mês inaugural do confinamento da covid-19 em Portugal. Na véspera do fecho de todas as coisas fui à biblioteca de São Lázaro e peguei nos três livros para passar o mês (era o tempo que eu acreditava que duraria a pandemia). Uma semana mais tarde, arrumei uma mochila, fechei a porta de casa, apanhei o metro até o aeroporto e parti num dos últimos voos para o Rio de Janeiro. Estou por aqui, desde então, sombreado pelos morros da baía de Guanabara. Dos três livros da biblioteca, um embarcou comigo e dois ficaram no apartamento de Arroios. Se lá permanecem, estão ao lado de moradores novos e provavelmente mais abonados para pagar as rendas que tanto subiram nas redondezas.

Foram necessárias algumas trocas de emails, uma notificação oficial e a coincidência de uma amiga carioca ter decidido se mudar para Lisboa para ocorrer uma solução. Adquiri novas edições de Werther e Pais e Filhos e coloquei-as num saco com o Num País Livre original da BLX. A minha amiga transportou e entregou os exemplares. No dia seguinte, um email da biblioteca confirmou a recepção. Os três livros voltavam à casa.

Penso na pessoa que esperou desde Março de 2020 para tomar esses livros emprestados. Sei que tal leitor não poderia existir, pois a BLX dispõe de exemplares idênticos aos que eu indisponibilizei, mas imagino o cenário, ainda assim. Como é que se teria transformado a leitura nesses três anos? Acompanharia os sofrimentos de Werther da mesma forma? Reescreveria uma versão contemporânea dos lamentos de Goethe com o chat GPT? Teria mais ou menos atenção às discussões políticas dos russos de Pais e Filhos, após a guerra na Ucrânia? Pensaria em viver em solo estrangeiro? Como receberia as histórias de exílio de Num País Livre?

Eu decerto estou diferente. Também o Brasil não é o mesmo, nem Portugal. Não estão iguais os amigos com quem convivi nos meus nove meses de Lisboa. Sei, pelas redes sociais, que fizeram filmes, lançaram romances e conceberam filhos. E que continuam a encontrar-se no Carnaval. Se um dia algum deles tomar emprestado um desses três exemplares, espero que saibam dessa história vivida pelos livros que cruzaram o Atlântico. A única lembrança que consegui deixar por aí.

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