Há 20 anos que Enano, palhaço como nós, alegra a costa alentejana: “O palhaço é um revolucionário do sistema”
Este Verão, Enano celebrou 20 anos de espectáculos pelas ruas do Alentejo. Activista, artista de rua profissional, “Dr. palhaço”, cria memórias com “paixão”. Aqui, até o jornalista entra no circo.
O sol cai sobre a Zambujeira e, no centro empedrado da arena a céu aberto aberta ao mar, Enano, ainda não palhaço, arruma as suas ferramentas, os sapatões, os tecidos e trajes coloridos, as T-shirts para venda com o seu perfil desenhado e o nariz essencial, a malinha de viagem e os chapéus. Sempre ao seu lado, o galgo Quixote, que não entra nos espectáculos, mas é um relações públicas de primeira para miúdos e graúdos. “Estou a arrumar o meu habitat”, diz-nos Enano, duas décadas de artista pelas aldeias e vilas da costa alentejana (e não só), com a sua costumeira T-shirt negra pré-show que avisa logo que este palhaço tem muito a dizer: nas costas lê-se “Eu moro onde você passa férias”.
Mais logo, assim chegue a noite, haverá “magia” durante uma hora, hora e meia. Sim, há palhaçadas, malabarismos, bicicletas, balões, fogo, mas também directas e indirectas de um activista que não cala o que pensa (da política aos fogos, da juventude à velhice) e, claro, momentos de histeria colectiva de riso com participação, no palco e fora, do público mais heterogéneo do mundo. Aplausos e gargalhadas (e notas) chegarão de todas as idades, de todas as nacionalidades, a um artista que quer “dignificar” a profissão de artista de rua e que, apesar de veterano, encara cada novo espectáculo de rua como único.
“No outro dia uma pessoa disse-me: ‘Ó Enano, já fazes isto de olhos fechados e sem nervos.’ Mentira!”, sussurra, enfático. “Agora, são 8h40, daqui a 20 minutos começo a sentir as borboletinhas no estômago. Tenho a responsabilidade de agarrar e abrir as energias de pessoas do norte a sul, indianos e alentejanos, do país e do mundo, para que todos sejam entretidos. Faço isto há 20 anos e cada espectáculo é a mesma sensação”, garante. E remata: “No dia em que deixar de sentir as borboletinhas, deixo a profissão.”
Mas antes de se lançar ao seu palco de rua, de levar velhos e novos, nepaleses e lisboetas, alentejanos e turistas do mundo a fazerem touradas, a tornarem-se actores e público, sentamo-nos mesmo ao lado da arena, frente à capela, com os olhos no mar. A nossa entrevista tem a participação de outra artista, a minha mãe, 86 anos, traços de demência e memória desaparecida, a minha criança. Enano gosta da companhia. “Vai ver-me hoje, dona Angelina?”, pergunta-lhe. “É capaz de ser tarde para mim”, responde ela. “Mas mora longe ou pertinho?”, tenta ele, abrindo o sorriso à resposta da poeta: “Moro em todo o lado.”
Quando explico a Enano a nossa rotina, de todos os dias irmos ver o pôr do sol e depois beber o chá na esplanada do Rita, o humano artista emociona-se. E quando eu e a minha mãe nos transformamos em artistas de rua e lhe cantamos um dos fados que ela guarda na desaparecida memória (“no mercado da ribeira, há uma história de amor, entre a Rita que é peixeira e o Chico que é pescador…”), ela agarrada ao muro da sua vida, transformando o artista em espectador, o mar parece humedecer-lhe os olhos. Nada de novo. Enano é perito no jogo de cintura entre o momento e o eterno, o palhaço e o humano, o artista e o espectador. É disso que se faz a sua arte de rua. Aplaude, “que giro!, que giro”.
Para mais, fora do circo do Verão, Enano (José Torres), 49 anos, nascido em Cádiz, Sul de Espanha, vindo no início de século para Portugal para o Alentejo porque se apaixonou, dedica boa parte do seu tempo a trabalhar com idosos, pessoas com demência, Alzheimer. “No Inverno, vou pelos lares e centros. Descubro tanta solidão, tanto abandono, levei um murro no estômago. Mas não vou de palhaço, vou de Enano humano, visto roupas de profissões antigas. E faço como tu, uso músicas que alguns reconhecem. Há um clique”, explica, enquanto a minha mãe decide visitar a capela, de portas abertas, enquanto nós estamos, diz, “a brincar”. Fora de brincadeiras (ou não, mas sérias), além dos centros de idosos, “que precisam e gostam tanto de contacto, abraços, beijinhos, atenção”, Enano passa também boa parte do ano entre hospitais. “Sou presidente da associação dos Doutores Palhaços, vamos em dupla visitar as pessoas internadas”, conta. “Fazemos remédios do riso", diz o Dr. Nano Sirene.
O mal dos forretas
Licenciado “em trabalho social”, saiu de Espanha para estudar circo no Chapitô, porque sempre teve “uma paixão” pelas artes circenses. Um contacto profissional com artistas de Novo Circo deu-lhe outra visão deste mundo e do Clown. A isso tudo junta teatro mais sério, “de personagem”, “de vez em quando”. Mas é na rua que se realiza, nessa “liberdade”. “Sou da rua, faço salas, mas a minha essência é a rua, amo cada minuto deste palco.” E por isso quer que as pessoas percebam que os artistas de rua “não estão a pedir esmola”: “Não quero uma moedinha!, quero que a pessoa sinta que mereço o preço de um bilhete.” Durante o show é muito enfático nisso, e, meio a brincar meio a sério, garante que “Deus vê tudo” e que quem fugir sem pagar bilhete vai sofrer “o mal dos forretas” (“Uma caganeira toda a noite”). O público ri-se e, algum, paga. “Vivo disto, peço o mínimo que são 5 euros. Se podes pagar, pagas, quero que a pessoa chegue ao fim do show e pense: ‘Foda-se, ele merece.’”
Nem sempre é fácil, nem sempre os espectadores apreciam as suas provocações – porque este não é palhaço de balõezinhos e tal, é palhaço como nós. Numa das nossas noites de conversas, poucos dias depois dos fogos que assolaram a costa, entre os seus números clássicos e muitas gargalhadas, pára tudo e discursa emocionado sobre os incêndios, pedindo a todos que tenham cuidado e não se ponham a fazer fogos no meio dos bosques. “À minha mulher e o meu filho arderam 35 hectares, arderam as nossas terras, os nossos campos, famílias perderam tudo, porra! Se calhar por uns que foram fazer bifanas e deixaram carvões no mato. Arderam as nossas terras, nossas vidas, por umas bifanas. Por favor”, diz durante o show. Há lágrimas e aplausos. Depois, continua o riso.
“Tenho orgulho em ser palhaço, este palhaço”, dir-me-á. Digo-lhe que eu também sou um palhaço, “tanto na aldeia, como no jornal”, mas menos profissional. Ele ri-se e expõe-se: “Se tu te aceitas como palhaço, é porque sabes que tens um brilho especial, és uma pessoa diferente [o meu sorriso alarga-se], tens segurança para te mostrares, a coragem de te aceitares, ‘Sou assim e não vou reprimir-me’. Eu gosto de ser como sou e nunca desisto da provocação e improvisação.” É que, defende, “o palhaço tem a missão de transformação social, o palhaço é um revolucionário do sistema, tem a obrigação de provocar, de fazer pensar”. Política, fogos, sociedade, estufas e migrantes, autarquias e juntas, touradas e futebol, palavrões “fofinhos”, entra tudo ao barulho.
“Há gente que chega e pensa: ‘Atão venho aqui ver um palhaço, pensava em malabarismo e de repente o gajo está a provocar-me, a mexer comigo? ’ Às vezes sou um pouco violento [entre aspas, sublinha], as pessoas reagem de muita maneira, mas muitos vêm ter comigo no final e agradecem-me.” Essa surpresa é atestada por dois espectadores noviços ao meu lado, à noite: o meu amigo Manel, 70 anos, traz o cão Chisco e vem pela primeira vez; pensava que era “só circo” e agora tem ataques de riso contínuos; outro olhar fascinado é o de Henrique, 8 aninhos, que veio com o pai, o fotógrafo deste artigo, Rui Gaudêncio — “Temos cá fotógrafo do PÚBLICO, façam caras bonitas para saírem no jornal, um aplauso para o jornalista”, dirá o palhaço durante o espectáculo levando a uma rara salva de palmas para este outro artista mais habituado aos bastidores.
E é realmente fascinante ver como tanto consegue chegar às crianças (o seu grito rotineiro de “Macaco chocolate”, que “não quer dizer nada, soa bem”, basta para fazer os pequenotes rirem, como se não bastassem as trapalhadas várias que vai fazendo com eles), como aos adultos (tem muitos fãs mesmo), aos idosos, a todos. “Uma das coisas que mudaram muito aqui é os migrantes, claro. Às vezes metade do meu público são os migrantes – nepaleses, indianos, paquistaneses, etc.” E ele também os integra, num dos raros momentos locais de convivência total bem-disposta. “Vêm muitos ver, riem-se muito, falam muito, e também os levo para o ‘palco’ para participarem”. Durante um dos shows, Dahua, do Nepal, sem perceber qualquer língua que não a sua, há-de levar-nos a rir e muito a tentar tocar uma música de tourada numa corneta. E ninguém ri mais do que os seus companheiros nepaleses e todos os grupos de migrantes que estão a assistir, talvez por se sentirem bem representados com tanto humor.
As crianças nunca mudam
Bem podem ter mudado outras coisas (“o pagamento electrónico, as pessoas ao telemóvel a filmarem e fotografarem e por isso com menos foco”, etc.), mas há coisas que permanecem iguais. “As gargalhadas, as palmas e, claro, as crianças. As crianças nunca mudam, só quando crescem.” E, sendo pai de uma de 3 e outra de 18, pouca coisa lhe dá mais prazer do que o que aconteceu hoje: mostra-me emocionado uma foto composta que uma fã lhe ofereceu — são duas imagens numa página, em ambas ela com Enano na tradicional foto pós-show, mas numa tem uns seis anos, na outra tem quase 20. “Ai. Felizmente, acontece-me muito. Vão-me vendo e vão crescendo. Ai.”
É que Enano, de facto, dá-nos mundo (garanto, que eu e a minha mãe somos fãs), e muito, que ele faz “espectáculos pelo país e pelo mundo inteiro”. Entre festivais, certames, convites, já actuou “em 49 países, em mais de 250 cidades”. Cada espectáculo é adaptado ao seu momento – há a base, os números treinados até à exaustão, mas ainda assim, de vez em quando, um corre mal, sairá um pouco chamuscado de tentar saltar com uma corda de fogo sentado no monociclo, mas não se fica: “Quando falha, é sinal de que estou vivo e isto é real, é a vida.”
O show, em que a primeira roda de espectadores é sempre das crianças, vive da improvisação e reacção, da “partilha”. A dado momento de um dos espectáculos, irá buscar para teatralizar uma tourada palhaçada os jovens Daniel de Penafiel, o Francisco e o Gonçalo de Lisboa, a Anitsche da Bélgica, o Dahua do Nepal, a pequena Margarida que será do mundo – na verdade, descobrimos depois, do mundo, sim, mas com ligações à Zambujeira; para mais, durante o show, Enano ao saber que a menina tem por apelido carinhoso Teté, aproveita a ocasião para homenagear a sua "professora", Teresa Ricou, a famosa palhaça Teté do Chapitô, coincidências da vida. E, assim, palhaço e espectadores, todos tornados palhaços, vivem o seu e nosso circo. Ele veste-os, mascara-os, é a farsa de uma tourada hilariante; um é o touro, ele é o toureiro, outro o forcado, outro o corneteiro, uma a “presidenta”, outra a guardiã da cerca do animal. Ele põe o mundo a tourear-se e toureia-nos a nós também, com o seu teatro físico, as suas imagens que são poemas visuais e onde vejo Chaplin, Keaton, Tati. O seu nariz vermelho é um farol, e ele também, entre os peluches, o sorriso, o riso e as lágrimas, o belo galgo Quixote. que aqui só combate o seu vício em mimos e festinhas.
Macaco chocolate!, que ao meu lado a minha mãe não tira os olhos de Enano. Já não se lembra de falar com ele, muito menos cantar-lhe, mas agora o seu olhar não sai de cima daquele outro palhaço. De vez em quando, quando ele faz ou diz das boas, olha para mim, sorri, abana a cabeça, uma alegria eterna que lhe durará mais uns minutos. Para quem tem e sabe fazer uso da sua memória, mesmo isto parecendo ser tudo efémero, não é. Na cabeça das crianças, dos adultos, na minha, este espectáculo (e outros) de Enano ficam para sempre com um sabor àquela felicidade no canto em que guardamos as melhores alegrias das melhores férias grandes de Verão. Palhaço? Sim. Palhaço como nós.
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Enano na rua
Esta quarta-feira, Enano actua em Vila Nova de Milfontes, na quinta em Porto Covo – sempre às 21h30. Para ver por onde anda é seguir o seu Facebook (Clown Enano).