Dúvida: como é que o desperdício alimentar contribui para a crise climática?
O antigo vice-presidente da Comissão Europeia já disse que, “se o desperdício alimentar fosse um Estado-membro, seria o quinto emissor de gases da UE”.
Calcula-se que cerca de 17% da produção total de alimentos no mundo esteja a ser desperdiçada – o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA) estima o desperdício alimentar em 2019 em cerca de 931 milhões de toneladas.
Na União Europeia, todos os anos contabilizam-se, em média, 59 milhões de toneladas de desperdício alimentar (Portugal é quarto país da UE onde mais se deita comida fora: 184 quilos por habitante), de acordo com dados do Eurostat. Em termos económicos, o Eurostat calcula perdas de cerca de 132 mil milhões de euros na UE.
Além de todos os problemas económicos e sociais que justificam o combate ao desperdício alimentar – como é possível desperdiçar tanto quando tantas pessoas passam fome? –, há uma outra camada de urgência nessa mudança: as emissões de gases com efeito de estufa e o consequente impacto nas alterações climáticas.
O problema pode ser dividido em duas partes:
- por um lado, ao entrarem em decomposição (em particular quando são enviados para aterros), os resíduos alimentares emitem gases com efeito de estufa (GEE), em particular o metano, que é, a seguir ao CO2, o segundo maior contribuinte para as alterações climáticas;
- mas a pegada ambiental do desperdício começa muito antes: produzir comida tem muitas emissões associadas, e, quando deitamos comida fora, estamos a desperdiçar também as emissões investidas nessa produção (e nem falamos da pressão sobre os solos e os recursos hídricos).
Mas quanto, ao certo?
Num relatório publicado em 2021, a Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO na sigla em inglês) estima que 8% a 10% das emissões globais de GEE possam estar associadas a comida que não é consumida. De acordo com o Centro Comum de Investigação (JRC) da Comissão Europeia, “se o desperdício alimentar fosse um país, seria o terceiro maior emissor de GEE, atrás da China e dos Estados Unidos”.
Na Europa, também há números para o enorme impacto ambiental: os 59 milhões de toneladas de resíduos alimentares representam, tendo em conta o impacto da sua produção, 252 milhões de toneladas de CO2 equivalente, ou seja, cerca de 16% do total das emissões de gases com efeito de estufa provenientes do sistema alimentar da UE, de acordo com dados da Comissão Europeia.
“Se o desperdício alimentar fosse um Estado-membro, seria o quinto emissor de gases da UE”, dizia no início de Julho Frans Timmermans, então vice-presidente da Comissão Europeia dedicado ao Pacto Ecológico Europeu, ao anunciar novas propostas legislativas no sector alimentar e dos resíduos (sim, a fonte desses dados também é o Centro Comum de Investigação, que parece gostar de comparar desperdício com países).
O Eurostat estima que 53% do desperdício venha dos agregados familiares, 9% dos serviços e restauração e 7% do retalho. Mas outros sectores também contribuem para o desperdício alimentar, como a produção primária (11%) e a indústria (20%).
O problema é de tal forma complexo a nível de políticas públicas que a Comissão Europeia incluiu o desperdício alimentar na sua primeira ronda de painéis de cidadãos temáticos, organizados no início deste ano. Os cidadãos recomendam, por exemplo, uma aposta na educação e sensibilização, a definição de padrões harmonizados para que os alimentos tenham rótulos com informação fiável sobre a pegada ambiental ou a promoção de outras formas de embalamento, de modo que as pessoas possam comprar alimentos na medida em que, de facto, pretendem consumir.
Como pode ser resolvido?
Actualmente, a principal ameaça ambiental decorrente dos biorresíduos (e outros resíduos biodegradáveis) é a produção de metano proveniente da sua decomposição em aterros, que representava cerca de 3% do total das emissões de gases com efeito de estufa na UE-15 em 1995, como é referido no site da Comissão Europeia.
Na comunicação da Comissão Europeia de Outubro de 2020 sobre a “Estratégia da UE para redução das emissões de metano”, lê-se que as emissões provenientes da deposição de resíduos em aterros diminuíram 47% entre 1990 e 2017, “um decréscimo alcançado principalmente graças ao desvio de resíduos biodegradáveis para outras opções de tratamento de resíduos, como a compostagem e a digestão anaeróbia, bem como à estabilização dos resíduos biodegradáveis antes da eliminação dos mesmos”.
Contudo, refere o documento, “são necessárias práticas de cumprimento mais rigorosas para reduzir ainda mais as emissões de metano provenientes dos resíduos”.
Mas tratar os biorresíduos é só a ponta do iceberg: a maior parte do impacto ambiental destes alimentos desperdiçados é causada por questões anteriores ao consumo. É preciso uma abordagem mais abrangente que ajude a reduzir o desperdício em toda a cadeia de produção.
Um estudo do JRC que recolheu dados de toda a UE descreve que, em termos absolutos, as frutas, vegetais e cereais são os grupos de alimentos mais desperdiçados. Mas há um pormenor importante: "A carne e lacticínios constituem menos de 20% da comida deitada ao lixo, mas são responsáveis por mais de 50% do impacto ambiental do desperdício alimentar", descrevem os investigadores.
Aliás, se dermos um passo atrás e olharmos para a pegada ambiental do consumo alimentar na UE, os produtos de origem animal representam 65% do impacto ambiental. Reduzir o consumo destes alimentos – como, aliás, já tem sido recomendado por cientistas de todo o mundo, também por questões de saúde – pode também reduzir a quantidade de desperdício destes alimentos, que custam tantas emissões a produzir.