Anunciada mais uma greve dos médicos. Sindicalistas criticam “propaganda” do Governo
“Pôr os centros de saúde sob a chancela dos hospitais” apenas “aumenta a burocracia”, critica a presidente da Federação Nacional dos Médicos.
"É só propaganda”. É desta forma que os dirigentes das estruturas sindicais que representam os médicos classificam as ideias centrais para a reorganização do Serviço Nacional de Saúde em 2024 que o secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre, enunciou na entrevista dada ao PÚBLICO nesta segunda-feira. Ricardo Mestre explicou que a intenção do Governo é cobrir todo o país com Unidades Locais de Saúde (ULS) já a partir de Janeiro de 2024 e que estas serão financiadas com um modelo diferente do actual, por estratificação de risco, dividindo a população em três grupos: saudáveis, doentes crónicos e casos complexos.
Mas os dirigentes da Federação Nacional dos Médicos (Fnam) e do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) estão cépticos. Cobrir o país com ULS (unidades que integram os centros de saúde e os hospitais numa mesma instituição e direcção) “é uma visão muito hospitalocêntrica”, critica a presidente da Fnam, Joana Bordalo e Sá, frisando que, para Ricardo Mestre, que é economista, "tudo se resume a folhas de Excel, a números". “Querem pôr os centros de saúde sob a chancela dos hospitais e isso não pode ser, só aumenta a burocracia. É como se fosse tudo mini-centralizado em vez de descentralizado e com autonomia”, contesta.
A dirigente sindical também olha com reservas para a ideia de, nos hospitais, se apostar na multiplicação dos centros de responsabilidade integrada (CRI), em que a remuneração está associada ao desempenho. “Isso é futurologia”, porque os CRI vão demorar a ser criados e não vão podem ser adaptados a todas as áreas, nota. “Como é que se fazer um CRI num hospital periférico com dois ortopedistas?”, pergunta. “Tudo isto é muita propaganda e pouca prática, estão a enganar a população com palavras”, remata.
Com expectativas “muito baixas” relativamente à próxima reunião negocial, que está marcada para 11 de Setembro, os dirigentes da Fnam decidiram convocar uma nova greve para os dias 14 e 15 de Novembro e já têm outras iniciativas agendadas – uma caravana nacional que percorrerá o país a partir de 5 de Setembro até 15 de Novembro para “ouvir os médicos” e esclarecer as questões relacionadas com as minutas de indisponibilidade para o trabalho suplementar além das 150 horas extras obrigatórias por ano, e a entrega de um manifesto em defesa da saúde pública aos eurodeputados portugueses e à comissária europeia da Saúde.
Estas iniciativas vêm somar-se às que o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) tem em curso desde há várias semanas. Além da greve nacional e das paralisações por regiões, o SIM convocou na semana passada aquela que foi a primeira greve de médicos internos no país.
Igualmente céptico em relação às medidas anunciadas por Ricardo Mestre, o secretário-geral do SIM, Jorge Roque da Cunha, lembra que a agora anunciada “estratificação pelo risco” já está prevista num decreto-lei de 2017. “Não é nada de novo. É só conversa. É mais um salto para a frente, e não sei se para o abismo”, critica.
Mantêm-se as paralisações convocadas para esta semana
Também convencido de que dificilmente será possível que os sindicatos cheguem a acordo com o Governo sobre a grelha salarial e a dedicação plena na reunião de 11 de Setembro, Roque da Cunha diz que as greves já marcadas pelo SIM são para continuar – mantêm-se as paralisações convocadas para esta semana (quarta-feira e quinta-feira) no Algarve, no Alentejo e nos Açores, e, na próxima semana, seguem-se greves regionais no Norte e em Lisboa.
"Penso que no dia 11 de Setembro o Governo irá fazer a sua última proposta. O Governo está a apostar tudo na dedicação plena, só que os profissionais estão muito desconfiados", avisa o secretário-geral do SIM, acrescentando que o sindicato mantém as reservas sobre a valorização salarial, por não ver qualquer proposta "acima dos 1,6%" no salário-base. “Mantemos as greves até finais de Setembro e continuamos muito pessimistas”, conclui.
Já o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, prefere esperar para ver como se vai operacionalizar o alargamento das ULS em 2024, lembrando que a imagem que o país tem daquelas que já existem há anos em Portugal é negativa. Apesar de concordar com a ideia de financiamento das unidades de saúde em função da tipologia dos utentes, Carlos Cortes não ficou com grandes esperanças depois de olhar para as medidas sugeridas por Ricardo Mestre. "Não houve propostas para a captação e fixação de médicos no SNS", que é "o grande problema".
Ricardo Mestre também sublinhou que a aposta, nos centros de saúde, passa pela generalização das unidades de saúde familiar (USF) do modelo B - em que a remuneração está associada ao desempenho.
André Biscaia, presidente da direcção da Associação Nacional das USF, diz que o cerne da questão, a este nível, é perceber o que o Governo pretende fazer com os indicadores que contam para a avaliação do desempenho - e que podem resultar na diminuição da remuneração.
Quanto às Unidades Locais de Saúde, lembra que todos os estudos (nomeadamente o que foi feito pela Entidade Reguladora da Saúde) mostram que "os agrupamentos de centros de saúde que não estão em ULS têm melhor desempenho". "As ULS tal como estão pensadas [actualmente] não funcionam", acentua.
Admitindo que "faz sentido" mudar a forma de financiamento das unidades para levar em conta o risco da população, André Biscaia nota, porém, que é preciso perceber como é que isto será concretizado. Sobre as negociações em curso, lamenta que o Governo esteja "a deixar que se arrastem" e que não se vislumbre um fim para "o braço-de-ferro com os sindicatos". "O salário-base tem que aumentar e isso tem que avançar rapidamente", conclui. com Lusa