Jéssica Silva: “É absolutamente triste e revoltante ver o que está a acontecer” em Espanha
“O futebol feminino percorreu um longo caminho, mas ainda não chegámos ao destino final”, diz a jogadora Jéssica Silva, que diz que está “com as colegas” espanholas na polémica que envolve Rubiales.
“Sou muito ambiciosa.” Jéssica Silva iniciou a carreira de sénior no União Ferreirense, de Anadia, aos 14 anos, o primeiro passo na viagem pelo mundo do futebol que já contou com paragens na Suécia, Espanha, França e EUA. De regresso aos treinos no SL Benfica, poucas semanas após a participação no Mundial, a internacional portuguesa, de 28 anos e natural de Vila Nova de Milfontes (Odemira), conversou com o PÚBLICO no Estádio da Luz, onde sonha disputar a Liga dos Campeões.
Interpelada por adeptos e turistas, a jogadora, sempre disponível para uma fotografia ou autógrafo, apontou ao futuro do futebol feminino em Portugal. “O futebol feminino tem de se reger pela diferença, o nosso caminho é diferente do futebol masculino. Sobretudo quando na Liga portuguesa há apenas duas ou três equipas a competir para vencer o campeonato...”
A entrevista foi feita antes da polémica em Espanha, envolvendo o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, que beijou na boca uma jogadora da selecção, Jenni Hermoso, durante as comemorações da vitória no Mundial Feminino. Mas já depois da conversa, Jéssica Silva aceitou comentar o caso. “É absolutamente triste e revoltante ver o que está a acontecer. A selecção espanhola, em vez de desfrutar do seu primeiro título mundial, tem de continuar a lutar por algo que devia ser transversal a todos nós: respeito, dignidade e honestidade.”
Já assimilou tudo o que aconteceu no Mundial, na Nova Zelândia?
Naturalmente, acho que estamos todas muito orgulhosas do que fizemos. Queríamos mais, saímos com o sentimento de que poderíamos lá ter ficado. Faz parte e certamente fez-nos crescer para o futuro.
Aquele remate de Ana Capeta ao poste da baliza dos Estados Unidos da América (EUA) provou que Portugal está à porta das melhores selecções do mundo?
A nossa participação resume-se a três jogos, que foram bons. Na estreia, estávamos nervosas, mas entrámos bem no jogo. Acho que conquistámos muito. Temos de estar orgulhosas.
Nos EUA, houve adeptos que festejaram a eliminação da própria selecção. Por outro lado, antigas internacionais, como Carli Lloyd, foram muito críticas da prestação das norte-americanas. A Jéssica jogou nos EUA. Que perspectiva tem quanto a estas atitudes?
As pessoas acabam por exigir mais, mas temos de respeitar muito a selecção dos EUA e o trabalho que as jogadoras desempenham fora e dentro de campo. Sinto que não atravessam a melhor fase, mas temos de olhar com respeito e admiração pelo que já fizeram. São os EUA e foram elas que começaram a luta para que nos valorizem e para que olhem para a [questão da] igualdade. Quem critica tem de ter noção de tudo isso. O torneio não lhes correu bem. Espero que voltem fortes porque admiro muitas daquelas jogadoras. E não vejo com bons olhos aqueles que festejam a eliminação da própria selecção.
Sente que o crescimento da selecção nacional feminina gerou uma voz social mais analítica e crítica?
Quando atingimos um determinado patamar, as pessoas vão sempre exigir mais. Temos feito o nosso caminho, não só à luz das televisões e do que é agora público. Quem nos acompanha desde o princípio sabe que continuamos a crescer. Há um trabalho incrível por parte dos clubes, também. Este processo não foi só o último Mundial. São também qualificações falhadas. Atingimos este patamar e percebemos o que é estar entre as melhores. Temos de garantir, agora, a presença assídua nas grandes competições.
E para exigir mais, é também preciso profissionalizar o campeonato...
Acredito que comportamento gera comportamento. O SL Benfica está de forma diferenciada no futebol português, o que gera alguma vontade nos outros clubes. Acredito que os clubes vão procurar dar melhores condições salariais e, mais importante, condições de infra-estruturas, porque ainda jogamos num campeonato com muitos [relvados] sintéticos, e não são sintéticos bons.
À parte disso, temos muitas jogadoras com segundos e terceiros empregos, que saem do emprego e vão a correr para o treino, que começa pelas 21h, e equipam-se em contentores. É importante todas as equipas trabalharem num sentido comum, que é a profissionalização do campeonato. Eu sou uma privilegiada, porque o clube onde jogo dá-nos as melhores condições.
A introdução do videoárbitro (VAR) na Primeira Liga feminina veio branquear o que está em falta?
Para mim não branqueia nada [risos]. Vejo o VAR como um acrescento à Liga, mas há outros elementos mais importantes. É importante darmos as melhores condições às jogadoras, para que todas possam ser profissionais e ter prazer a jogar futebol.
Face à forma assertiva como fala sobre questões sociais, qual o principal desafio que os portugueses devem encarar?
Empatia. Tenho de olhar para as minhas colegas e perceber que não têm um salário digno, um balneário com chuveiros com água quente. Temos de saber olhar para os outros para continuarmos a crescer. O futebol feminino tem de se reger pela diferença, o nosso caminho é diferente do futebol masculino. Sobretudo quando na Liga portuguesa há apenas duas ou três equipas a competir para vencer o campeonato. A empatia deve ser transversal na sociedade.
Em 2019, quando jogava em França, no Lyon, não tinha planos para regressar. Dois anos depois, assinou pelo SL Benfica. O que mudou e a fez voltar ao país?
Percebi que havia um projecto ambicioso no SL Benfica, que é o meu clube do coração, onde se trabalha para estar entre os melhores clubes da Europa. E quando me mostraram este projecto, percebi que é a imagem da minha pessoa, porque sou muito ambiciosa. Nesse momento, decidi que fazia sentido voltar a Portugal.
E chega com uma Liga dos Campeões no currículo, entre outros troféus. Hoje, apenas lhe falta conquistar a Taça de Portugal na competição nacional. Considera-se a melhor jogadora portuguesa?
A verdade é que adoro ganhar troféus. A Liga dos Campeões foi uma das conquistas mais importantes na minha carreira, mas isso não faz de mim a melhor jogadora da actualidade. Sinto que estou a viver um bom momento, que sou uma jogadora mais madura e mais importante no clube e na selecção. Mas não me vou autodenominar como a melhor em Portugal.
E sente-se suficientemente valorizada?
Não trabalho à procura da valorização. Estou muito serena por aquilo que conquistei. Mais importante do que o reconhecimento de terceiros, quero chegar a casa e sentir que estou a marcar a geração do futebol, sentir que tenho um papel dentro e fora do campo. Esse é o meu objectivo.
Ainda é difícil negociar os contratos?
Não vou falar do equal pay [igualdade salarial] mas com aquilo que tenho vindo a conquistar e pela mediatização, e por aquilo que trabalhei para estar neste patamar, os patrocínios surgiram. Prefiro entender essa parte do reconhecimento como o conhecimento do trabalho que tenho vindo a desenvolver. É bom sentir que estas pessoas reconhecem os obstáculos que ultrapassei para viver este momento.
Em Setembro, várias jogadoras do Rio Ave acusaram um antigo treinador [Miguel Afonso] de assédio sexual. Quase um ano depois, sente que este caso motivou mais atletas a denunciarem casos semelhantes?
Claramente. Devemos realçar a bravura dessas jogadoras. Tiveram coragem e espero que sejam protegidas. Esta denúncia foi importante para que outras jogadoras tivessem também essa coragem. É um alerta para a consciencialização de toda a comunidade, para que todos possamos ajudar.
E, agora, o caso na Federação Espanhola de Futebol [a entrevista foi feita antes da polémica de Luis Rubiales, que deu um beijo na boca de uma jogadora na celebração da vitória de Espanha, mas, já após a entrevista, Jéssica Silva aceitou comentar o caso]...
É absolutamente triste e revoltante ver o que está a acontecer. A selecção espanhola, em vez de desfrutar do seu primeiro título mundial, tem de continuar a lutar por algo que devia ser transversal a todos nós: respeito, dignidade e honestidade.
O futebol feminino percorreu um longo caminho, mas ainda não chegámos ao destino final. Ainda há tanto para percorrer... Espero que isto seja também uma forma de catalisar a mudança no mundo. Estou com todas as minhas colegas.
Ainda vivemos numa sociedade em que o homem se continua a ver como superior à mulher?
É tudo estrutural, crescemos a ver só os homens a jogar. Ainda há dias ouvi a Marta [internacional brasileira] a dizer que, há uns anos, os jogos dela não eram sequer transmitidos.
Acho que ainda há um longo caminho a percorrer. De facto, os nossos jogos já são televisionados, mas, de um ponto de vista geral, nós, mulheres, ainda temos de mostrar trabalho para que nos sejam dadas as condições devidas. Acho que não tem de ser assim, porque nas equipas masculinas são proporcionadas as condições de trabalho sem terem os resultados. Porque é que com as mulheres é diferente? É importante investirem em nós por haver potencial. É importante serem dadas as condições às jogadoras para haver resultados, não o contrário.
Por falar na Europa, a carreira da Jéssica passou pela Suécia, reforçou o Linkoping em 2014, aos 19 anos. Abdicou do conforto por um contrato profissional?
Sim, sobretudo porque sempre fui uma menina de casa. Quanto ao conforto, tive de deixar a minha família porque sentia que tinha uma aptidão diferente. Já na escola os meus professores compreendiam a azáfama que era a minha vida, porque morava no Porto, estudava em Aveiro, treinava em Albergaria-a-Velha e ainda ia à fisioterapia em Ílhavo. Tinha professores incríveis, e não me esqueço deles porque percebiam toda essa rotina e tentaram sempre ajudar.
Quando a minha mãe deixou de morar em Águeda, fui viver com a minha treinadora, a professora Paula Pinho, que foi uma tutora a todos os níveis. Optei por aquela rotina porque queria seguir um sonho, para mais tarde sair de Portugal, porque era impensável ser profissional cá. Quando tive a minha oportunidade, depois de concluir o 12.º ano, assinei pelo Linkoping. Fui atrás do meu sonho e conquistei-o, mas, sim, estão inerentes sacrifícios, que acontecem para que dês passos em frente. Ainda que não tenha jogado tanto quanto queria, aquela fase foi importante para entender que precisava de tudo aquilo para dar asas ao meu sonho.
Seguiram-se experiências em Espanha, França e EUA. Foram épocas mais estáveis?
Fui fazendo o meu caminho e conquistei os meus objectivos. Queria ter mais tempo de jogo, mas sempre quis estar entre as melhores, porque sabia que nesse contexto também me iria tornar melhor. Continuo a falar com as minhas colegas, que se tornaram amigas, que fazem parte do top-15 do mundo. E isso acaba por uma das melhores dádivas que o futebol me deu.
Na última época marcou 23 golos em 35 jogos. Juntando os sucessos na selecção, foi a melhor temporada que já fez?
Foi uma época com muita história, o que não significa que tenha superado as minhas expectativas.
O que faltou?
Faltaram mais minutos de jogo, mais golos, mais assistência. Tinha estabelecido objectivos individuais, que não são mais importantes que os objectivos colectivos, e a verdade é que faltou conquistar uma Taça de Portugal, que é um sonho. As pessoas associam os números a uma grande época. A verdade é que, a nível particular, não posso dizer que foi a melhor temporada. Ainda assim, o mais importante foi poder ajudar o colectivo.
E no dia em que conquistar a Taça de Portugal, parte para novas aventuras?
Estou muito focada no SL Benfica, só penso em conquistar troféus. A Taça de Portugal é uma competição muito especial. Já pisei o relvado do Estádio do Jamor, mas amava pisar esse relvado com a camisola do SL Benfica e conquistar a prova.
Recuando no tempo, começou a jogar futebol sénior aos 14 anos, no União Ferreirense, e somou a primeira internacionalização aos 16 anos. Como se descreve como jogadora?
Tive alguns percalços na minha vida, nomeadamente lesões que atrasaram alguns objectivos, mas que me fizeram estar em campo de forma diferente. Tenho aprendido que não tenho de provar nada a ninguém. Tenho de continuar a crescer e a aprender, mas uma coisa é certa: tenho de ser feliz em campo. Naturalmente, tenho de assumir o papel técnico-táctico que os meus treinadores pedem, mas tenho de me divertir. Se o meu jogo passa pelas fintas, é a minha forma feliz de jogar. Percebi que tenho de sair de campo de cabeça levantada porque dei o máximo e fui feliz a jogar.
Nos dias de jogo, guarda algum ritual ou gesto especial, dedicado a eles [familiares]?
Eu penso e falo muito com eles. O único ritual antes do jogo é, no balneário, dançar.
A época já começou. Tem tempo para alguns passatempos?
Tenho sempre. Vou à praia, ver o mar, ouvir música, tocar guitarra. Vou a Vila Nova de Milfontes, Porto Covo, Vila Nova de Santo André. Faço por ter um tempo para estar com os meus amigos e com a minha família, para que tenha um equilíbrio entre a profissão e a vida social e pessoal.
Está a ver alguma série ou a ler algum livro?
Estou a ler Alegria Breve, de Vergílio Ferreira.
E que músicas não podem faltar na playlist?
Ouço tantas músicas e tenho tantos amigos na área [risos]. Ouço todos os géneros e muitos artistas portugueses, adoro a nossa música. Temos artistas fantásticos em várias áreas e há que também os valorizar.
Nesta vida sem dias iguais, guarda algum tempo para as notícias?
Acompanho, sobretudo, pelo telemóvel ou tablet. Mas hoje já tenho o cuidado de ligar a televisão e ouvir as notícias.
Na comunicação social escreve-se também muito sobre a Kika Nazareth, com quem joga. Vê-a como uma irmã mais nova?
É uma miúda com muito potencial, que poderá fazer muito pelo SL Benfica e pela selecção. Como jogadora mais experiente, tento dar alguns conselhos. Lá está, é a empatia, o olhar para o próximo e ajudar.
No futebol nacional, alguma jogadora serviu de irmã mais velha?
Lembro-me da Ana Borges, Edite Fernandes, Carolina Mendes e Carla Couto.
Qual a jogadora portuguesa mais difícil de defrontar?
Ana Borges.
Um dos seus seis irmãos, o Gabriel, joga no Famalicão, aos 16 anos. Dá-lhe muitos conselhos? Foi a Jéssica que o convenceu a deixar o Sporting?
[Risos] Não, não fui. Os miúdos de hoje esquecem-se que têm de trabalhar de forma consistente e esperam que tudo aconteça rapidamente. Acho que é uma questão geracional. Tento passar-lhe a minha experiência e aconselho-o. Naturalmente, tenho de dar algumas “duras” ao Gabriel, mas este será um bom ano para ele.
Que planos guarda para o futebol?
Não quero ser treinadora de futebol, é a única coisa que posso dizer.
E que sonhos guarda para a vida fora do futebol?
Quero muito ser mãe. Sei que é algo que tem de ser planeado, mas é o primeiro sonho de que me lembro.
Qual é a pergunta que nunca lhe fazem e que gostava que fizessem?
Gostava de pedir às pessoas para lerem as entrevistas na íntegra e perceberem que precisamos todos uns dos outros. No futebol feminino estamos a atravessar uma fase muito bonita. Não levem a mal o que digo. Fui criticada durante o estágio da selecção por esta minha forma de estar, mas penso muito no outro. Leiam as coisas na íntegra e não me entendam por meias palavras.