Cortar sobreiros corta emissões?
Recentemente recebemos a notícia de que o governo deu autorização à EDP para o abate de 1821 sobreiros, numa área de 32 hectares, nos concelhos de Sines e Santiago do Cacém, para instalação do Parque Eólico de Morgavel.
O Ministro do Ambiente justificou esta decisão com a “imprescindível utilidade pública” deste empreendimento, nomeadamente no que diz respeito ao cumprimento dos objetivos de Quioto e do Plano Nacional de Energia e Clima. Foram apresentadas “medidas compensatórias” por parte da EDP, através da arborização de 50 hectares com sobreiros e medronheiros.
O abate de um sobreiro jovem ou adulto não é compensado pela plantação de outro, pois um montado de sobro – assim como qualquer povoamento florestal ou agroflorestal – é um sistema vivo, onde os ciclos naturais são complexos e demoram a desenvolver-se. Para além disso, o sobreiro é uma espécie protegida em Portugal, pelo que a autorização do seu abate deve, à luz da lei atual, ser excecional e ser considerado de “utilidade pública”.
Vivemos uma emergência climática. Esta realmente implica repensarmos burocracias, legislação e instituições que travam qualquer resposta alinhada com os prazos da ciência climática. Contudo, o que de certeza é contestável nesta e noutras situações passadas é a real utilidade pública deste tipo de projetos, na escala e modelos que estão a ser propostos.
Em primeiro lugar, para que o investimento em energias renováveis se traduza numa transição energética, tem de realmente haver uma substituição da utilização de fontes de energia fóssil por energias renováveis, e não um acrescento de fontes renováveis às energias fósseis. Nesta situação, que é a que se vive neste momento em vários países, está a ocorrer uma expansão energética e não uma transição energética. É o que está a acontecer a nível global, levando a um aumento da produção de energias renováveis, acompanhado pelo aumento da queima de combustíveis fósseis, e consequente aumento do nível de emissões de gases com efeito de estufa. Ou seja, a instalação de renováveis só serve para travar a crise climática se isso significar o fim de combustíveis fósseis.
Assim, para haver uma transição energética supõe-se que ao grupo EDP seria exigido o encerramento das centrais a gás que possui e um plano para uma transição justa imediata para os seus trabalhadores. Exigido o encerramento, e não a venda destas centrais a outras empresas, porque isso não provoca qualquer efeito em termos de emissões, apenas uma mudança do nome do autor do crime e assegura compensação financeira ao anterior culposo. E leia-se um plano de transição justa para os trabalhadores destas centrais, pago pela EDP, e não uma transferência para o Estado das responsabilidades e custos sociais e económicos do encerramento das infraestruturas, dessa forma pago pelos contribuintes.
Em segundo lugar, o tipo de projetos como o Parque Eólico de Morgavel é uma réplica exata do modelo usado durante décadas para explorar os combustíveis fósseis. É um modelo em que o acesso às fontes de energia e às infraestruturas-chave é centralizado, com base em monopólios naturais entregues a meia dúzia de grande empresas, com decisões sem qualquer processo democrático, com base em critérios de lucratividade, e que em nada têm que ver com o interesse público – nem garantindo acesso universal a energia para serviços essenciais por parte das populações, nem garantindo a descarbonização que necessitamos para travar o colapso climático.
A crise climática não vai ser resolvida pela criação de mais negócios e recompensas a empresas culposas. A descarbonização não é um negócio, e portanto não pode ser conduzida pelas mesmas empresas que registaram lucros recorde enquanto nos conduziram até este momento de múltiplas crises. A descarbonização faz-se cortando emissões de gases com efeito de estufa e encerrando infraestruturas emissoras. Se a EDP quer cortar emissões, corta emissões. Cortar sobreiros não corta emissões!
O que o movimento por Justiça Climática tem há muito proposto é uma transição energética justa que em nada se parece com os investimentos que estão a ser propostos. Queremos que a energia seja desmercantilizada e que, tal como outros setores essenciais, não possa ser gerida na ótica do lucro. Propomos uma Democracia Energética, assente nos conhecimentos da ciência climática e em processos participativos e deliberativos das populações, garantindo acesso universal a energias renováveis para satisfação das necessidades reais das pessoas, e não de investidores privados, banqueiros e acionistas. Propomos uma Transição Justa e a criação de um Serviço Público de Energias Renováveis que as instale como um direito universal.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico