São precisos poucos dias para o calor extremo causar insegurança alimentar em famílias vulneráveis

Estudo da Universidade de Oxford mostra que a ligação entre calor extremo e insegurança alimentar pode ser observada em poucos dias em famílias de trabalhadores que deixam de poder comprar comida.

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Trabalhadora rural na região de Androy, em Madagáscar ALKIS KONSTANTINIDIS
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Já conhecemos bem o impacto potencial do calor extremo na insegurança alimentar a médio prazo, ao danificar culturas e reduzir as colheitas no espaço de meses. O que nem sempre se tem em conta é que o calor também pode desencadear situações de insegurança alimentar em meros dias, ao reduzir a capacidade das pessoas para trabalhar e garantir o seu sustento. Um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido, tentou quantificar essa influência, mostrando como a desigualdade exponencia o impacto do calor na insegurança alimentar. E deixa algumas pistas sobre o que pode ser feito para reduzir esse efeito.

“Temos de estar mais atentos às diferentes formas como as alterações climáticas e as condições meteorológicas extremas podem afectar a insegurança alimentar e que estes impactos não são apenas agrícolas, mas também socioeconómicos”, sublinha e autora principal do estudo, Carolin Kroeger, investigadora do Departamento de Políticas e Intervenção Social da Universidade de Oxford, em resposta ao Azul.

No estudo, a investigadora comparou dados de temperaturas com informações sobre insegurança alimentar e observou que “o número de dias quentes na semana anterior estava associado a níveis significativamente mais altos de insegurança alimentar moderada a severa”. Quanto mais dias de calor – nomeadamente com ondas de calor –, mais visível se torna esse impacto, descreve o artigo científico “Calor é associado a aumentos de curto prazo na insegurança alimentar de agregados familiares em 150 países, mediado pelo rendimento”, publicado esta semana na Nature Human Behaviour.

Em dias demasiado quentes para trabalhar, pessoas sem contrato fixo (como alguns trabalhadores da agricultura), com empregos precários (como trabalhadores das limpezas) ou auto-emprego (vendedores ambulantes) deixam de ter rendimentos naqueles dias sem trabalho. O impacto também se mede na produtividade, quando ainda é possível executar as tarefas, mas o calor não permite o mesmo grau de concentração ou energia, o que limita o rendimento de pessoas que trabalham à peça, por exemplo.

Acontece em Portugal?

O estudo analisou 150 países, concluindo que este efeito é mais visível em países mais pobres, onde existe maior proporção de trabalho agrícola ou emprego precário (em sectores como a construção civil) e baixos salários em geral.

Sem dados desagregados consoante os níveis de rendimento dentro de cada país, a análise olha para dados médios e, assim, põe logo de fora os países com rendimentos mais elevados, como os da União Europeia. Aliás, a nível nacional, o efeito do calor na insegurança alimentar dos agregados familiares deixa de ser visível para países com PIB per capita superior a 8180 dólares, cerca de 7564 euros (em Portugal, em 2021, o PIB per capita foi de 24.567 dólares, cerca de 22.719 euros).

Isto não significa que o impacto não ocorra entre grupos vulneráveis da população de países como Portugal, explica Carolin Kroeger, mas apenas que o estudo não foi desenhado para “observar esses efeitos” a nível interno.

Tudo indica que “mesmo as pessoas de grupos populacionais vulneráveis em países com rendimentos elevados podem estar sujeitas a flutuações de rendimento relacionadas com o calor que podem levar à insegurança alimentar, mas apenas se estiverem reunidas determinadas condições”, continua a investigadora.

Por exemplo, estes impactos podem ser observados entre trabalhadores da agricultura ou da construção civil pagos ao dia, “que não podem trabalhar num dia quente e que dependem desse rendimento para se alimentarem a si próprios e às suas famílias”.

“Acredito que a lógica do mecanismo se aplica a qualquer pessoa cujos rendimentos dependam da sua produtividade e que possa não ter poupanças ou uma rede de segurança para amortecer eventuais perdas de rendimento”, completa a investigadora.

Soluções

O estudo da Universidade de Oxford conclui que é preciso ter em conta o impacto das alterações climáticas no mercado de trabalho e outras implicações socioeconómicas, em particular ao fazer projecções em termos de adaptação e de segurança alimentar.

Num país como Portugal, com episódios crescentes de secas e ondas de calor e uma concentração de zonas rurais e pobres nas zonas mais quentes do território, quais poderiam ser as medidas legislativas para proteger os trabalhadores vulneráveis e evitar a eventual insegurança alimentar das famílias?

A investigadora não arrisca recomendações à medida, mas fala sobre algumas opções comuns no leque de soluções, como alargar o funcionamento dos bancos alimentares para entregar alimentos durante as vagas de calor ou assegurar subsídios aos trabalhadores durante as semanas mais quentes de Verão (na China, por exemplo, os trabalhadores continuam a receber quando os empregadores não puderem garantir temperaturas saudáveis no local de trabalho).

Carolin Kroeger fala ainda da actualização de leis e regulamentação laboral, por exemplo, exigindo aos empregadores que “garantam uma determinada gama de temperaturas no local de trabalho” (algo que existe em Portugal para o sector de escritórios e serviços), que forneçam vestuário de protecção contra o calor (também já previsto em Portugal) e horários de trabalho alternativos ou ainda que continuem a pagar aos trabalhadores “se estes não puderem trabalhar em segurança no calor”.

Apesar de ser mais imediato pensar em sectores como a agricultura ou a construção civil, mais expostos às condições naturais, também quem trabalha em fábricas ou outros espaços fechados pode ser muito afectado pelo calor extremo, dependendo das condições de construção. No que toca aos locais de trabalho, a investigadora da Universidade de Oxford reforça a possibilidade de as empresas investirem em arrefecimento sustentável, apostando em estratégias a longo prazo que ajudem a baixar as temperaturas.

“Estas estratégias podem incluir uma maior cobertura verde no planeamento urbano, um melhor isolamento dos edifícios (incluindo telhados pintados de branco) e a utilização de sistemas de arrefecimento urbano [district cooling] sustentáveis”, exemplifica a investigadora.