A introdução de Emily Wilkie à maternidade tem sido monopolizada pelo calor. Directora de uma instituição de caridade, Wilkie, de 34 anos, vive em Londres com o marido e o filho Dylan, de quatro meses. As grandes janelas do apartamento criam um espaço arejado que agradou ao marido de Wilkie quando comprou o apartamento, mas também deixam entrar constantemente a luz do sol. Quando a temperatura exterior ultrapassa os 27 graus Celsius, o apartamento fica pelo menos três graus mais quente. Nos meses de Verão, o cão da família usa um colete de arrefecimento. O filho, diz Wilkie, está “constantemente a suar”.
“Isso fá-lo sentir-se tão infeliz”, afirma. “Sentimos esta culpa de estarmos a ser más mães. É muito stressante”, acrescenta.
O médico de Dylan aconselhou-a a manter o seu quarto entre os 18ºC e os 20ºC, o que é impossível, mesmo nas noites mais amenas, visto que a casa não tem ar condicionado. Nos dias quentes, Wilkie tenta passar o máximo de tempo possível em locais que possuem ar condicionado: passa muito tempo na mercearia ou na biblioteca. Se as temperaturas ultrapassarem os 30ºC, ela e o filho planeiam ir para casa dos pais de Wilkie, em Sheffield. Embora a casa também não tenha ar condicionado, tem mais espaço e as temperaturas são mais baixas do que onde vivem.
A família de Wilkie é uma entre milhões que se debatem com este problema – casas quentes – no Reino Unido e na Europa, que é o continente que está a aquecer cada vez mais rápido por causa das alterações climáticas. As ondas de calor na região estão a tornar-se mais frequentes e intensas, criando problemas de habitabilidade em cidades que há muito sobrevivem sem ar condicionado e onde as casas antigas e as mais recentes não foram construídas para o calor elevado. Muitas pessoas vivem em habitações em que o arrefecimento é feito de forma inadequada e, por isso, estão a ter dificuldades em dormir, trabalhar e relaxar, sendo que algumas têm poucos recursos. E pela frente há apenas a promessa de que dias mais quentes virão.
A temperatura que deve estar dentro de casa é um limiar que varia no Reino Unido e no resto da Europa.
A França impõe um máximo obrigatório de 26ºC nos quartos durante a noite. A Irlanda limita os quartos a 26ºC e as salas de estar a 28ºC. A Espanha é mais pormenorizada, estabelecendo máximos para diferentes divisões e exigindo que os edifícios utilizem dispositivos de sombreamento a um determinado nível de ganho solar (a quantidade de calor que um edifício absorve da exposição ao sol). Alguns países estabelecem limites de temperatura estáticos, enquanto outros variam dependendo da região ou, no caso de Inglaterra, em função do clima.
No entanto, apesar de todas estas orientações, um estudo académico recente concluiu que poucos países europeus têm normas de construção suficientemente sofisticadas para proteger os residentes do sobreaquecimento. Os investigadores citaram questões como a não-distinção entre salas de estar e quartos, a não-consideração do efeito de ilha de calor urbano (que torna as cidades mais quentes do que as áreas circundantes) e a não-consideração dos efeitos das alterações climáticas.
Como uma estufa
Os moradores das casas que sobreaquecem nem sempre sabem a quem recorrer, se é que há alguém. Os proprietários das casas estão geralmente presos ao que pagaram e às alterações que eles próprios podem fazer nas casas. Os inquilinos podem tentar levar o senhorio à justiça, mas só depois de terem analisado directrizes obscuras e inconsistentes sobre o que constitui condições interiores inabitáveis. Entretanto, as empresas construtoras raramente são obrigadas a fazer mais do que dizer que estão em conformidade com os regulamentos locais em matéria de temperatura.
“Na maioria das normas, se não em todas, não há inspecção e verificação, nem após o projecto, nem após a construção”, afirma Shady Attia, professor de Arquitectura Sustentável e Tecnologia de Construção na Universidade de Liège, na Bélgica, e principal autor do estudo académico. “A situação afigura-se muito má para os proprietários e inquilinos, nos próximos anos”, acrescenta.
Quando Ruth Ferris, de 43 anos, perguntou ao proprietário do seu prédio de cinco andares em Londres se podia instalar ar condicionado central, recebeu um severo “não”. Por isso, Ferris comprou três aparelhos de ar condicionado portáteis. Nos dias mais quentes da cidade, nem eles conseguem aguentar.
“É como uma estufa”, diz Ferris, que trabalha num banco de investimento e vive no último andar do edifício. “Metade do meu apartamento é essencialmente composto por paredes de vidro”, conta.
Quando as temperaturas sobem, a luz do sol entra e o calor de todo o edifício sobe para o apartamento de Ferris. No Verão, o seu apartamento ultrapassa regularmente os 30ºC; desde que o comprou em 2017, Ferris já viu as temperaturas a chegar aos 45ºC. Nesses momentos, “não se consegue dormir. Não se quer fazer nada”, diz. “Muitas vezes, não quero ir para casa”, admite.
Max Hundhammer, de 26 anos, também está a lutar para se manter fresco. Actualmente, está a estudar para ser advogado em Frankfurt, mas é difícil trabalhar no apartamento arrendado que partilha com dois colegas de quarto, quando as temperaturas no Verão atingem habitualmente os 30ºC.
“O meu quarto está virado para sudeste, por isso apanho muita luz solar e calor nas primeiras horas da manhã”, diz. “Esse calor mantém-se durante o dia. Se suamos mesmo quando estamos [apenas] sentados à secretária, isso não facilita necessariamente as tarefas diárias, como a aprendizagem”, explica.
O sobreaquecimento interior é normalmente afectado por dois factores: a facilidade com que um edifício absorve o calor de fontes externas e internas e a facilidade com que dissipa o calor através da ventilação. Os anos, a concepção e a localização desempenham um papel fundamental em ambos, diz Giorgos Petrou, investigador do University College London.
Em 2019, um estudo do Reino Unido co-escrito por Petrou revelou que as casas em áreas urbanas, casas geminadas de dimensão média e casas construídas de raiz (em vez de serem restauradas) tinham os maiores problemas de sobreaquecimento. As casas construídas depois de 1900 eram mais susceptíveis de sobreaquecer, tal como as que eram mantidas quentes com aquecimento comunitário ou urbano. Um estudo separado realizado no Verão de 2018 revelou que 19% dos quartos e 15% das salas de estar do Reino Unido sobreaqueciam.
Existem formas pouco tecnológicas de ajustar a absorção e a dissipação de calor. Persianas, cortinas, vegetação e outras sombras reduzem o ganho solar, tal como a limitação dos vidros virados para sul e sudoeste. A possibilidade de abrir portas ou janelas em dois lados de um edifício dissipa o calor através da ventilação cruzada.
As casas com vidros duplos construídas nos últimos 20 anos, especialmente as que têm janelas seladas do chão ao tecto, são particularmente vulneráveis ao calor, diz Julie Godefroy, consultora de sustentabilidade e responsável pela neutralidade carbónica na Chartered Institution of Building Services Engineers. “É o pior dos dois mundos“, diz ela. “Obtém-se o ganho solar, mas não se obtém o fluxo de ar”, explica.
No Reino Unido, os regulamentos que entraram em vigor no ano passado limitam a quantidade de vidros nos novos edifícios e exigem uma determinada área de superfície de janelas que podem ser abertas e, em alguns casos, dispositivos de sombreamento. Em Portugal, foram tomadas medidas semelhantes, que exigem dispositivos de sombra quando as janelas correspondem a mais de 15% da área útil da divisão em que se encontram. Outros países, incluindo a Espanha, limitam a quantidade de calor solar que um edifício pode absorver, limitando indirectamente a superfície das janelas.
As casas mais antigas tendem a ter janelas mais adequadas, mas não são inerentemente mais frescas – especialmente se a eficiência energética for má. Na maioria das vezes, o isolamento é útil para proteger contra a exposição ao sol directo, diz Godefroy: “Na verdade, estamos a proteger-nos do calor exterior”, diz.
Recordes de calor na Europa
Se as habitações no Reino Unido e na Europa estão mal equipadas para as temperaturas actuais, este Verão é um prenúncio dos desafios que se avizinham. As temperaturas atingiram níveis recorde em todo o continente, com ondas de calor graves em Itália, Espanha e Grécia. No Reino Unido, o calor recorde do Verão passado, em que as temperaturas ultrapassaram os 40ºC, poderá ser considerado normal em 2060 e até fresco em 2100, de acordo com um estudo do Serviço Meteorológico do Reino Unido.
O envelhecimento da população europeia, mais vulnerável ao calor, é um factor de risco crescente. O mesmo acontece com o parque habitacional. Estima-se que haja ar condicionado no Reino Unido, em França e na Alemanha em menos de 5% das casas. Mesmo em Itália, onde o tempo quente é habitual, o ar condicionado está presente em menos de um terço das habitações (embora os últimos dados relativos ao assunto tenham sido recolhidos há cerca de dez anos). Um relatório encomendado pelo Comité para as Alterações Climáticas do Reino Unido concluiu que metade das casas do país estão actualmente em risco de sobreaquecimento, com um aquecimento de 1,2ºC em relação à era pré-industrial. Com 2°C, esse risco aumenta para 90%.
Alex Turney, de 31 anos, vive no Bairro de Testaccio, em Roma, e trabalha como freelancer numa aplicação que oferece áudio-histórias para dormir para adultos. É irónico, portanto, que esteja a ter dificuldades em dormir. Este Verão, as temperaturas exteriores têm ultrapassado regularmente os 35ºC, o que leva a temperaturas semelhantes no quarto arrendado que partilha com o seu cão, Felix. O calor começa cedo; dormir depois das 7h da manhã é difícil, e Felix tem de ir passear antes que o pavimento fique demasiado quente para as suas patas.
O apartamento não tinha ar condicionado quando Turney se mudou – poucos em Roma o têm – por isso comprou um ar condicionado de janela para a sala de estar, que é também o seu escritório em casa. Turney e Felix passam os dias e as noites no quarto, com uma ventoinha e um saco de gelo nos pés de Turney. “Às dez da noite ainda estão 30ºC no exterior e o meu quarto, devido à sua orientação, apanha muito sol à tarde”, diz. “Fica cada vez mais quente e não arrefece muito à noite”, conta.
Cerca de 850 quilómetros a oeste, Àlex Sancliment, um estudante de 24 anos da Universidade de Barcelona, vive com os pais nos subúrbios da cidade. A sala de estar do apartamento tem ar condicionado, tal como o quarto dos pais, mas o dele não. As temperaturas máximas diurnas de 32ºC estão a tornar-se comuns em Barcelona, enquanto as temperaturas em algumas regiões de Espanha ultrapassaram os 45ºC este Verão.
“Tentar estudar ou dormir em casa é muito difícil”, diz Sancliment. A vizinha que mora ao lado tem 80 anos e não tem ar condicionado no seu apartamento. Durante os meses de Verão, ela faz muitas vezes a sesta no quarto dos pais dele.
Muitos europeus, especialmente os pais, têm conhecimento sobre espaços mais frescos: sabem onde ir quando está demasiado calor em casa. Mas mesmo o melhor caçador de espaços frescos não pode fazer muito. Os “centros de arrefecimento” com ar condicionado, populares em locais como os Estados Unidos – Phoenix tem mais de 40 – são praticamente inexistentes no Norte da Europa. E nenhum oásis com ar condicionado durante o dia pode ajudar com o calor nocturno.
Cada vez mais noites tropicais
Em vastas áreas do globo, as noites estão a aquecer a um ritmo mais rápido do que os dias. Em muitos países europeus, as temperaturas à noite nunca descem abaixo dos 20ºC, sendo conhecidas como “noites tropicais”. Uma sucessão de factores limita a capacidade do organismo para recuperar do calor diurno. O ciclo de sono dos seres humanos é fundamental para regular a sua temperatura interna, e os estudos revelaram a existência de uma ligação entre as perturbações do sono induzidas pelo calor e o excesso de mortes, nomeadamente por acidente vascular cerebral.
“É a pressão contínua sobre o corpo”, afirma Maggie Rae, presidente da secção de epidemiologia e saúde pública da Royal Society of Medicine do Reino Unido. “Trata-se de um risco muito grave para a saúde e uma das maiores preocupações das alterações climáticas para a saúde humana”, explica.
A Escandinávia raramente se debate com o calor nocturno – mas tem um desafio em termos de luz solar. Na Suécia, as horas extras de luz durante o dia no Verão, geralmente consideradas um bónus, podem tornar-se um risco quando as temperaturas sobem demasiado.
“Nunca se está sem sol, o que os suecos me repreenderiam por me queixar”, diz Hester Mott, de 29 anos, que é do Reino Unido, mas vive em Estocolmo. Numa sociedade que chega a ter apenas seis horas de luz durante o dia no Inverno, os apartamentos com janelas amplas são muito procurados. Mott, o seu companheiro e a sua filha recém-nascida vivem num deles: um apartamento arrendado com tectos altos que data de 1929.
As janelas viradas a sudoeste do apartamento garantem sol durante todo o dia, mas, como estão todas de um lado, não permitem criar correntes de ar quando está calor. Durante os meses de Verão, as temperaturas no apartamento podem atingir os 30ºC. Devido às restrições locais relativas à fachada do seu edifício, Mott não pode instalar ar condicionado.
“Vivemos num edifício de apartamentos típico de Estocolmo, construído para resistir a Invernos terrivelmente frios”, diz Mott, que trabalha para uma organização sem fins lucrativos. “Ficamos bem quentinhos aqui durante o Inverno. Mas a desvantagem é que no Verão é absolutamente escaldante”, conta.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post